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Belmonte, terra de partida… e de chegada

Belmonte é uma terra de partida e de chegadas, conquistando horizontes que ultrapassam as barreiras que a Serra da Estrela não deixa ver, para lá do mar. Uma mística que vem de tempos distantes marca a suas origens lendárias.

Diz-se que Cáramo, um pastor grego, depois de escutar o oráculo de Delfos, seguiu sua cabrada em busca de abrigo até um belo monte sobranceiro ao Zêzere onde construiu sua casa, o Belo Monte, ou Belmonte. Aqui tudo gira em torno de lendas e feitos de cabras e cabritos e depois os Cabrais, que um pouco por todo o lado deixaram sua marca em brasões e selos. É verdadeira charneira de uma região rica em património e tradições, de culturas ancestrais que beberam na Lei Mosaica uma identidade que ainda se mantém na única comunidade judaica do interior, com a sua sinagoga.

Tudo leva a crer que Belmonte tenha tido origem no acastelamento ocorrido na Europa ao longo da Antiguidade Tardia e da Alta Idade Média, influência esta trazida para a Península Ibérica pelas invasões dos povos bárbaros, mas, sobretudo, durante as guerras de avanços e recuos entre cristãos e muçulmanos onde Belmonte era terra limite de fronteira.

Certo, porém, é que disseminados pelo concelho existem vestígios Pré-Históricos, mas sobretudo da ocupação romana, testemunhados em assentamentos, “villas” e povoados, pontes, calçadas e fontes que, aos poucos, vão renascendo do pó e da terra que durante séculos os esconderam ao conhecimento. Centum Celas, no Colmeal da Torre, antiga vila do século I d.C, Fórnia I e II ou Muro, nas faldas da Serra de Malpique, Caria com sua Casa da Torre (século XIV), são disso exemplo. Belmonte recebeu Carta de Foral de D. Sancho I em 1199, apesar da região ter sido conquistada por D. Afonso Henriques. Antes, em 1194, o Bispo de Coimbra concedeu o Foral a Centum Celas, centro de uma rica região mineira que cativou bispos como Frei João Manuel, prelado da Guarda (Egitaniense), que, em 1458, aqui foi mineiro. Centum Celas é um dos “ex-libris” do concelho, com sua torre de 12 metros, enigmática como o próprio nome do sítio “cem celas” que os velhos dizem ter sido construída por uma velha com o filho às costas. Ou então que a Torre era tão alta que dela se podia avistar a Senhora da Estrela, em plena Serra.

Pedro Álvares Cabral

A “villa” teria sido parcialmente destruída por um incêndio nos séculos III/IV e mais tarde reedificada, recebendo mesmo Carta de Foral do Bispo de Coimbra em 1194. A esta decisão não teria naturalmente sido alheia a posição da “villa”, mas também a circundante riqueza mineira e agrícola. O concelho não teve sempre a configuração geográfica actual. Ao longo dos tempos sofreu mutações e mesmo Caria chegou a pertencer ao concelho da Covilhã aquando da atribuição do Foral de D. Sancho I, que mandou povoar e restaurar esta zona da actual Cova da Beira. Certo é, porém, que no século XIII Belmonte era uma vila progressiva, com seu castelo, uma sinagoga e duas igrejas: S. Tiago e Santa Maria (do castelo). A crise de 1383/85 fez aqui sentir-se e Belmonte teve então de D. João I a “Carta de Couto”, em 1387, a pedido do Bispo de Coimbra que sobre a vila disse “o sseu castello de bellmonte he muy despouado por rezam desta guerra”.

D. João I nomeou, entre 1397 e 1398, Luís Álvares Cabral como Primeiro Alcaide do Castelo, ele que herdara o morgadio instituído por sua tia, Maria Gil Cabral. Aliás, a sombra da família Cabral pairou e ainda marca a vida desta vila do Norte do distrito de Castelo Branco. Estabeleceu-se definitivamente por aqui em 1466 depois da doação, a título hereditário, da Alcaiadaria-mor do castelo a Fernão Cabral, membro do Concelho de D. Afonso V. O castelo tornou-se então a residência senhorial dos Cabrais cujo poder extravasou os muros de Belmonte, estendendo-se pelas Beiras em redor. A despovoada e abandonada antiga vila de Colmeal (de onde malfadadamente em nome da justiça (?) o povo foi expulso pela GNR), em Figueira de Castelo Rodrigo, ostenta ainda o brasão dos Cabrais. Mas também na Guarda, Celorico da Beira, Algodres, Fornos e tantas outras terras.

O ano de 1500 viria a imortalizar a vila. Aqui nasceu Pedro Álvares Cabral, que, ido do interior, das faldas da Serra da Estrela, comandou através dos mares a armada, a segunda a caminho da Índia, que acharia o Brasil num episódio histórico ainda não desvendado ao certo, mas que muitos traduzem numa “tomada de posse da “Terra Brasilis” já conhecida pela corte portuguesa e guardada em segredo máximo, não fossem os espanhóis tecer alguma aventura”, sobre o que Duarte Pacheco Pereira parecia já ter certeza. D. Manuel I atribuiu a Belmonte nova Carta de Foral em 1510 e, em pleno século XVI, aqui se estabelecem os frades da Ordem Terceira de São Francisco, na Serra da Esperança. Por aqui passaram certamente peregrinos a caminho do túmulo do apóstolo Santiago, em Santiago de Compostela, na Galiza espanhola. E a sua marca ou influência terá ficado na toponímia e dedicação da Igreja de S. Tiago e manifestações artísticas interiores.

Uma das mais antigas comunidades judaicas de Portugal

Belmonte – pode afirmar-se – constitui o centro de uma zona agrícola e mineira, atravessada por importantes estradas romanas e medievais por onde circulavam gentes e seus “cabedais”, mesteres, artes e ofícios, comerciantes e tratantes, almocreves e físicos, ourives e tinturões, tecelões e correeiros, alfaiates e viajantes, ferreiros, funileiros, albardeiros e negociantes vários. Os judeus foram e ainda são o exemplo vivo dessa vitalidade de outrora a que o édito de conversão forçada e expulsão de 1496 veio desferir tremendo golpe, de tal forma que muitas das terras onde a “gente de nação” populava, mergulharam como que numa maldição de crise, despovoamento e quase ruína.

Belmonte orgulha-se de integrar nos seus muros uma das mais antigas comunidades judaicas de Portugal, ombreando desde tempos recuados com a Guarda, Trancoso, Pinhel, Penamacor, Fundão, Covilhã (sede de Rabinato), Idanha, Gouveia, Celorico da Beira ou Linhares. Portadores de uma cultura muito própria, resistindo a “inquisições e perseguições” os judeus aqui se afirmam com a sua Sinagoga (Beit Elihau – A casa de Elias), inaugurada em 1996, cinco séculos depois do malfadado decreto régio a que se juntou a Inquisição que levou o povo hebreu português ao desenvolvimento de outras terras e comunidades na Europa, Orientes e Américas. Permanecem nas portas os cruciformes, marcas inscritas nos umbrais em local onde deveria estar a Mezuzah judia, testemunhando ser esta ou aquela uma habitação das gentes seguidoras da Lei de Moisés em tempos recuados.

A cruz de Kubichek

Belmonte é uma terra de História, de gente simples e laboriosa, onde as confecções são desde tempos recuados uma marca importante na economia regional, facultando ainda, pese embora a crise, emprego e prosperidade, onde a qualidade é apanágio principal.

Visitar o Centro Histórico, cerrar os olhos e sentir o pulsar desta terra de granito e espiritualismo, pode significar recuar no tempo e sentir o poder testemunhado pelo Castelo, pela casa da Câmara e Pelourinho, pela Judiaria, pelos solares e casas brasonadas onde abundam os testemunhos dos Cabrais, igrejas e veredas, ruelas estreitas medievais “casadas” com modernas construções, o peso da Cruz que Juscelino Kubichek de Oliveira trouxe em pau-brasil, do próprio Brasil de que foi presidente e fundador da capital (Brasília) até à base do terreiro do castelo, e o tremendo peso de Pedro Álvares Cabral na História e no orgulho português.

A Igreja de S. Tiago, templo românico dos séculos XII-XIII, encerra em si a capela gótica de Nossa Senhora da Piedade e o mausoléu da família Cabral, que lhe foi acrescentado no século XV e onde, na plataforma superior, em lugar central, está a urna contendo parte das cinzas do achador do Brasil. Merecem ainda destaque a Tulha, o Solar dos Cabrais, que acolhe o Museu dos Descobrimentos e do Novo Mundo, o Pelourinho e antiga praça, a Igreja matriz inaugurada em 1940, as capelas de Santo António e do Calvário. Caria, Maçaínhas, Colmeal da Torre, Inguias e Belmonte são as freguesias deste concelho a par dos povoados de Carvalhal Formoso, Malpique, Gaia, Monte do Bispo, Quinta Cimeira, Belmonte-gare e Olas.

• José Domingos

Belmonte, terra de partida... e de chegada

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