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Beiral de mudança

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Eles sentados na sala esperam uma consulta ou uma opinião. Aguardam impacientes a hora que passa e o médico que não chega. Para eles, é um dia único, o dia entre todos os dias por ser o mais decisivo. A vida hoje pode ter uma epifania – o antes e o depois, o momento único de uma verdade que muda a estratégia da vida. Sr. Manuel encontrei-lhe uma metástase no fígado. Sr. António o resultado diz que era um cancro. Oh Dona Josefa isto é coisa má e como sabe temos de fazer quimioterapia para arrancar a ruindade do corpo. O Astolfo começa diálise na 4ª feira. São momentos de completa surpresa, inesperados, roturas dramáticas como o da amputação de uma perna, o acordar de um acidente, o luto repentino. E esta série de acontecimentos é demolidora para uns, é estonteante para outros e provoca inércia em muitos. A aprendizagem deste tipo de situações nunca foi feita na faculdade, nunca foi sugerida aos médicos ou aos advogados. As pessoas não percebem a importância de uma informação degrau. A informação que nos cria uma descontinuidade é como uma escada que desce mas começa num socalco, ai de quem tropece e vá de rebolar. Mas se nós não temos esta formação, menos se nota no jornalismo que convoca a desgraça, convoca a desonra, chama o infortúnio. Uma pessoa é violentada numa consulta, numa página de jornal, numa carta das leis. A surpresa é, pois, uma força que descontinua a existência, que a rebobina. Vivemos sempre na borda de um desemprego, de uma conta inesperada, de um filho afoito que tem azar, de um médico chamar-nos com cara fechada, de um advogado na rota de uma quezília, de um desfalque, de uma notícia estúpida com o nosso nome dentro. A vida é também este beiral de mudança, esta proximidade com o senso dos outros.

Por: Diogo Cabrita

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