Arquivo

Auschwitz-Birkenau, 1945

Observatório de Ornitorrincos

Há precisamente sessenta anos, a 27 de Janeiro de 1945, as tropas soviéticas libertaram o que restava do campo de concentração de Auschwitz. O que restava, porque o Exército Vermelho não encontrou mais de poucos milhares de prisioneiros que os alemães não tinham conseguido transferir para outros campos ou matar, quando se aperceberam da inevitabilidade da derrota. O que encontraram foi apenas uma pequena parte do Horror. Só ali tinham perecido mais de um milhão de vítimas.

Até ao fim da guerra, as forças aliadas dariam de caras com instalações semelhantes em Dachau, Treblinka, Majdanek, Ravensbruck ou Buchenwald, num total de dezoito campos de concentração e extermínio onde cerca de seis milhões de pessoas haviam sido exterminadas. Calcula-se que 90% desse número fossem judeus, naquele que foi o maior genocídio racial da História.

Há sobre o Holocausto, a sua concepção e a sua execução teorias diversas. Uma das mais comuns actualmente é a tese da loucura dos líderes nazis, principalmente de Hitler. É bem mais confortável pensar que apenas um louco, alguém fora do seu juízo pode pensar numa Solução Final para milhões de seres humanos. Mas é tese pouco verosímil. Hitler (como Estaline na URSS) tinha consciência plena dos seus actos. Ambos pretendiam para os seus povos apenas o que a Modernidade prometeu à Humanidade desde o início. Um mundo perfeito e ordenado no progresso, como um jardim só com flores, sem ervas daninhas. Fizeram-no à custa de dezenas de milhões de vítimas. Sem loucura. Conscientemente. Arendt escreveu que Hitler combateu duas guerras. Uma pela expansão do Reich, outra pelo extermínio dos judeus. Banalizando o Mal junto daqueles que o executavam, legitimando moralmente (ou deslegitimando a imoralidade, como se quiser) a morte através da autoridade da violência, do trabalho rotineiro e da desumanização das vítimas, os dois maiores tiranos do século XX levaram a cabo um plano bem pensado. Categorizar Hitler e Estaline como loucos é desculpabilizar as suas acções e classificá-las como inumanas. Porque o Homem moderno da Europa ocidental não pode ter o Mal dentro de si, disse sempre o pensamento iluminista. O Holocausto foi a prova do contrário.

Bauman explica que foi a organização burocrática, racional e positivista da Modernidade juntamente com um regime ideológico e totalitário que permitiu a ocorrência do Holocausto na Alemanha nazi. A modernidade não causou o Holocausto, obviamente, mas forneceu-lhe os instrumentos para o servir.

“Em nenhuma altura da sua longa e tortuosa implementação o Holocausto entrou em conflito com os princípios da racionalidade. A ‘Solução Final’ não chocava em nenhum aspecto com a procura racional da eficiência, a orientação centrada nos objectivos. Pelo contrário, nasceu de uma genuína preocupação racional e foi gerada pela burocracia na sua verdadeira forma e propósito. O Holocausto seria impensável sem tal organização burocrática. O Holocausto não foi uma extracção irracional dos resíduos ainda não completamente erradicados da barbárie pré-moderna. Foi um legítimo habitante da casa da modernidade; na realidade, um habitante que não se sentiria como seu nenhum outro lar.”

[Bauman, Zygmunt [1989], Modernity and the Holocaust, Cambridge: Polity Press.]

Para Bauman, judeu polaco, o Holocausto levanta importantes questões morais, sendo que a mais importante é a sua consideração de que a moral não é um produto das sociedades (o que tem levado a relativismos disparatados), mas sim o inverso. É pela forma como vemos o Outro que nos portamos com ele. Só assim podemos lidar com o Outro, só assim o mundo contemporâneo saberá encarar o Bem e o Mal.

Foi há sessenta anos, mas foi ainda há muito poucochinho.

Por: Nuno Amaral Jerónimo

Sobre o autor

Leave a Reply