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Atalhos para Deus

observatório de ornitorrincos

Celebrou-se (ou se calhar comemorou-se) o 90º aniversário da aparição de Nossa Senhora aos pastorinhos. Talvez devesse confessar que sou um tipo absolutamente sem nenhuma fé, embora confessar seja uma atitude tipicamente religiosa, e por conseguinte contraditória. Para dizer a verdade, não tenho fé em Deus nem acredito em milagres, daí não acreditar que o Sporting ganhe o campeonato no Domingo nem que Laetitia Casta me visite nos tempos mais próximos.

É impressionante a força com que a fé move as pessoas. Admiro a coragem daqueles que pela crença na Virgem percorrem a pé centenas de quilómetros, peregrinação que nunca tive necessidade de fazer. Explico. Felizmente, o meu pai, que sempre que se esquecia de alguma coisa me pedia para a ir buscar ou me pedia ajuda nas tarefas para as quais eu era mais inepto (de uma forma geral, todas), dizia eu, o meu pai é um ateu convicto, razão que talvez esteja na origem de nunca ter prometido caminhar até Fátima. Fosse ele religioso, e lá tinha ido eu estrada fora de mochila às costas até à Cova da Iria.

Foi na família que aprendi a convivência e a tolerância inter-religiosa. Entre pais, irmãos, tios e avós encontrei católicos apostólicos, católicos críticos, catequistas, testemunhas de Jeová, budistas, ateus. Eu próprio reflecti muito sobre os caminhos para Deus, estado de espírito umas vezes confundido com a meditação, outras com a estupidez. Lembro aqui algumas vezes que a minha mãe, senhora interessada na espiritualidade, me perguntava “Estás a meditar?” e o meu pai, homem mais céptico, respondia “Não, está estúpido”. Reconheço hoje que nessa reflexão não fui suficientemente decidido, pois ao tentar encontrar os caminhos para qualquer divindade, me fiquei quase sempre pelos bares à beira da estrada.

Na família multicultural que me calhou em sorte, também a selecção de trajectos religiosos foi diversificada. Aos seis anos de idade, o meu irmão abandonou a missa – e consequentemente a sua ligação afectiva à Igreja de Cristo – aborrecido com uma ordem (legítima) do padre que celebrava a Eucaristia para tirar o boné que envergava. Dois mil anos de teologia cristã destruídos por uma peça de vestuário da cultura de rua nova-iorquina. Num ápice, o apego de um garoto a um barrete pôs em causa para o resto da sua vida os esforços de mudança e adaptação decididos no concílio Vaticano II. Onde os cardeais e o próprio Papa usavam, se não me engano, um chapelinho.

Apesar de não me devolver a fé nem 50 euros que deixei por esquecimento numa caixa multibanco, ver as manifestações religiosas do 13 de Maio dá-me uma sensação de estar a perder alguma coisa. Nomeadamente dinheiro, por não ter seguido a carreira de fabricante de velas. Não julgue o leitor que tenho algum desprezo por aqueles que peregrinam a Fátima e dedicam horas da sua vida a uma crença no divino. No entanto, é verdade que sinto algum desprezo por quem vai a pé ao karaoke e dedica horas a decorar letras dos Pólo Norte. E se alguém cantar trechos desta banda num karaoke perto de mim, tenho-lhe não apenas desprezo mas também uma enorme vontade que as sete pragas do Egipto lhe ocorram todas nessa noite, enquanto eu rogo ao público em redor que lhe perdoe por não saber aquilo que canta. Repare-se aqui no sincretismo ético das várias sensibilidades religiosas com que convivi e que aprendi a respeitar, não obstante ser agnóstico. E isto apesar de ter uma avó que gosta das cantigas de António Calvário.

Por: Nuno Amaral Jerónimo

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