Arquivo

Ascensão e queda dos anjos papudos

Hic et Nunc

Na discussão parlamentar que deu origem à aprovação do orçamento retificativo, salta à vista que o governo se enganou, mentiu e escondeu deliberadamente decisões que vai aprovando nas costas dos portugueses. Continuamos assim na presença de um governo muito próximo daquilo que Ettore Scola nos mostrou, com a particularidade de ser um punhado de gente mal-intencionada, que vai “lixando” os mesmos de sempre, pois sabem que este Zé Povo é bom e de bom coração e, refilando todos os dias, acaba por aceitar tudo o que lhe é imposto, mesmo estando à beira do colapso total.

Estive atento à contenda parlamentar e um pequeno e breve pormenor tornou-se deveras interessante e tem obviamente de ser analisado.

Não é todos os dias que uma pequena freguesia como Caçarelhos é lembrada por Sªs Senhorias. Acredito piamente que os vizinhos de Santulhão, Pinela, Uva ou Campo de Víboras ficassem roídos de inveja. O facto é que nenhuma dessas pequenas localidades do concelho de Vimioso se pode dar ao luxo de um belo dia do início do século XIX ter sido palco do nascimento de um tal Calisto Elói de Silvos e Benevides de Barbuda, miguelista convicto, ultra conservador, a que Camilo deu corpo e alma no best-seller “A queda de um Anjo”. Para melhor o descrever basta verificar a sua completa intolerância, num episódio que bem o caracteriza. Calisto foi eleito presidente de Câmara de Miranda do Corvo em 1840 e logo na primeira reunião e na discussão que se seguiu com a vereação não aceitou a decisão maioritária, deu meia volta e nunca mais voltou a entrar na Câmara. Este morgado de Agra de Freimas era um conhecedor nato de toda a literatura clássica e um ótimo comunicador, o que fez com que anos mais tarde fosse eleito deputado pelo círculo de Miranda, tornando-se um fogoso deputado da nação, com intervenções que faziam vibrar e rir todas as bancadas e, isto sem esquecer a sua forma estranha e esquisita de vestir. As luzes da ribalta, a vida da grande cidade e, quiçá, a tentação mundana, faz com que o protagonista do livro de Camilo, de laivos saloios e conservadores, se transformasse, trocasse de ideias e posições políticas, chegando a mudar comportamentos sociais e familiares.

O Parlamento recordou, por breves instantes, esta interessante e incoerente personagem para se entender que talvez, nos tempos que correm e por lá, possam existir uns tantos Elóis que ontem diziam e se comportavam de determinada forma e hoje assumem posturas visivelmente antípodas. A banda musical Delfins no seu êxito “A Queda de um Anjo”, descreve assim a maioria: “Ontem liam evangelhos/Hoje é lei da constituição/Mas ninguém me dê conselhos/Nunca gostei que a maioria/Organizasse o meu dia-a-dia/ Não acredito em democracia/A queda de um anjo/ em cima de um homem/Que ao ganhar a idade/ Perde a razão”.

Pois é, depois de tudo isto dou por mim a pensar que nem mesmo o político mais ordinário, cínico, calculista, troca-tintas e homem mau, tão bem descrito por Stefan Zweig, que foi José Fouché, consegue igualar alguns protagonistas da nossa praça, que teimam em manter posições filosoficamente estúpidas, sustentadas num discurso de falinhas mansas, de tipo ecuménico de púlpito, de uma qualquer missa dominical. Eça escrevia em 1872, nas suas “Farpas”, que este cantinho à beira mar plantado estava num estado só comparável à Grécia, mas num momento de grande otimismo, o bom do escritor da Póvoa do Varzim avisava «Quando os meios faltarem e um dia se perderem as fortunas nacionais, o regime estabelecido cairá para deixar o campo livre ao novo mundo económico», podendo acrescentar-se que com ele, cairão, naturalmente, os anjos papudos que nos governam, os tais que teimam em manter um programa “soft” de autêntica propaganda que determina que todos os comportamentos e esquemas políticos funcionem, o que tirando aquela máxima “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”, Goebbels, ao lado destes, pode ser considerado um bem comportado menino de coro. E para verificar isto não será necessário fazer-lhes um desenho…

Por: Albino Bárbara

Sobre o autor

Leave a Reply