Tudo ocorre numa pequena aldeia na comuna de Caulónia, sul de Itália. A paisagem é montanhosa e a existência silenciosa. Quase não se trocam palavras. Há quanto tempo viverá esta gente aqui, em comunidade, para poder dispensar assim a comunicação? As Quatro Voltas (Le Quattro Volte, 2010), realizado por Michelangelo Frammartino, convida-nos à contemplação do correr do tempo. É um trabalho cinematográfico paciente na captação da textura e do movimento de todas as coisas que habitam este lugar.
As quatro voltas a que o título faz referência são quatro esferas distinguíveis mas indissociáveis, descritas pelo filósofo e matemático grego Pitágoras, que passou pela Caulónia. O velho pastor doente pertence à esfera humana, dos animais racionais. A jovem cabra pertence à esfera animal. O abeto-branco pertence à esfera vegetal. O carvão pertence à esfera mineral. O filme demora-se da mesma forma em cada uma das esferas, ligando-as, como que para mostrar (em vez de demonstrar) a verdade da frase do químico francês Antoine Lavoisier: “Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.” Podemos pensar esta relação entre esferas como um fluxo de voltas entre a matéria inerte e a matéria viva, entre o pó e o pó levantado, fazendo uso das palavras de António Vieira. E é a deslocação dos elementos de cada volta que vai decidindo a precisão dos enquadramentos e das durações dos planos.
A presença humana não se resume ao pastor no fim da sua vida. Há um padre, um acólito, uma governanta, e outros pastores. A população da vila surge como um todo depois do abeto-branco ser cortado e exposto na praça, evocando a tradição cultural da povoação. Na parte final, um grupo de trabalhadores da Serra de São Bruno produz carvão vegetal usando um processo artesanal transmitido das gerações anteriores: uma pilha de lenha é coberta de argila formando um tronco de cone, depois o fogo é ateado no centro e mantido durante várias horas até a madeira ficar carbonizada. A memória e vivência populares preservam-se enraizadas no trabalho, na habitação da região, nas relações sociais de entre-ajuda.
O abeto-branco, o carvão, o cão, e a cabra, são incluídos na lista de créditos finais ao lado dos seres humanos. Faz sentido, numa obra que filma tudo o que olhar e o ouvido abarcam sem hierarquias. Uma árvore pode ser o centro de uma cena tanto quanto uma pessoa. A dimensão espiritual de As Quatro Voltas passa por este modo de considerar a realidade como totalidade. Se sobressai uma preocupação com o equilíbrio ecológico, este não se fecha numa mera noção de meio ambiente, mas fundamenta-se na ideia de uma casa partilhada ou vivida como partilha (oikos) com a terra como chão e o céu como tecto.
Por: Sérgio Dias Branco