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As mesmas palavras

Relendo Alexandre Herculano, encontro esta frase: “A história do país é a condenação dos que nos têm governado”. Em “As Farpas” de Eça de Queirós, tomo nota deste amontoado de traços tremendos: “Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Já se não crê na honestidade dos homens públicos (…). A ruína económica cresce, cresce, cresce… O comércio definha. A indústria enfraquece. O salário diminui. A renda diminui. O Estado é considerado na sua ação fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo (…). E a certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se por toda a parte: o País está perdido!”

E finalmente, no prefácio da 3ª edição do “Portugal Contemporâneo”, reconheço o esforço de Oliveira Martins para ser prático: “É sobretudo necessário atacar de frente os dois problemas fundamentais, o da economia pública do País e o das finanças do Estado, para de tal modo se poder travar a roda dos empréstimos e das importações excessivas, estabelecendo ao mesmo tempo o equilíbrio na balança económica do país e na balança do seu Tesouro”.

Herculano escrevia em 1851, Eça em 1871 e Oliveira Martins em 1894. Podia aqui restituir os contextos, falar do começo da Regeneração, da crise de 1868-1871, do fim do fontismo. A questão, porém, não é a do enquadramento histórico dessas palavras, mas da sua aparente ‘atualidade’. Como se explica essa sensação de ‘podia ter sido escrito agora’ que muitos terão tido ao ler as citações? Existirá o ‘eterno retorno do mesmo’ para um pequeno país que há duzentos anos procura a modernidade por atalhos que o sujeitam regularmente a deceções e vexames? Haverá uma natureza portuguesa, como aquela natureza humana que, segundo alguns, explica a relevância dos clássicos? Ou trata-se simplesmente, para além de qualquer analogia real, do fascínio de certas fórmulas e diagnósticos?

Talvez o turismo literato pela cultura crítica do século XIX seja hoje enganador. Já não existe a sociedade rural em que Herculano e Oliveira Martins esperaram formar a massa de pequenos proprietários independentes de um país livre e autossuficiente. A população perdeu a juventude, a fertilidade e a mobilidade desses tempos. O mundo também é outro. O país de Eça era a periferia de uma Europa que estava no centro do mundo. Hoje, a Europa é ela própria uma periferia. Somos um país diferente num mundo diferente.

Acreditar que nada muda pode justificar desalento, mas também tranquilidade. “O país está perdido!” Outra vez? Se foi sempre assim e ainda cá estamos, para quê inquietarmo-nos? Eça registou o efeito soporífico desse estado de sítio permanente: “Esta decadência tornou-se um hábito, quase um bem-estar, para muitos uma indústria”. Mas só porque as palavras não mudaram, não quer dizer que as coisas sejam as mesmas. Talvez nos conviesse aprender a falar do que se passa de modo a sentirmos a sua novidade. Ficaríamos provavelmente menos sossegados.

Por: Rui Ramos

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