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As Heroínas do Chile

Durante a Primeira Grande Guerra da Europa as mulheres começaram a aparecer nos campos de batalha, como enfermeiras. A britânica Florence Nightingale, solicitou licença ao seu Governo para levar um grupo de aguerridas mulheres para curar os feridos no campo de combate da Crimea. Nascida em Florença, a 12 de Maio de 1820, esta enfermeira britânica ficou famosa por ser pioneira no tratamento a feridos de guerra, durante a Guerra da Criméia, vindo a falecer em Londres, 13 de Agosto de 1910. Conhecida na história pelo apelido de “A dama da lâmpada”, pelo fato de se servir deste instrumento para auxiliar na iluminação aos feridos durante a noite, contribuiu também para o desenvolvimento da Enfermagem ao utilizar o Modelo biomédico, baseado na medicina praticada pelos médicos. Outras das inovações que introduziu na sua área de actividade foi a Estatística, sendo pioneira na utilização de métodos de representação visual de informações, como por exemplo o gráfico sectorial (habitualmente conhecido como gráfico do tipo “pizza”) criado inicialmente por William Playfair. Fonte: Página da BBC sobre história da medicina.

Mas, antes dela e do seu grupo de enfermeiras, outras mulheres lutaram no campo de batalha para conquistar a independência da sua terra colonizada pela coroa do Reino da Espanha. Entre todas, a primeira em quem penso, encontra-se a Dama Criolla Dona Javiera Carrera, irmã do primeiro Presidente do Chile, José Miguel Carrera. Membros de uma família aristocrata, que ambicionava o poder (tanto como os seus bens e posses), e do coronel José Luís Carrera. Família subversiva, adicta ao poder, tinha no seu seio José Miguel, mais tarde Presidente do Chile, que importou o conceito desde outras Repúblicas europeias e das colónias libertas da Espanha, na hoje América Latina. A sua presidência começou em 1811, após um golpe palaciano que derrotara o Governador da Junta provisional do Governo do Chile, Juan Martínez de Rozas, primeiro, e, depois, José Santiago Portales e Pedro José Prado Jaraquemada.

Filho de uma família aristocrática, que servira as armas do Rey de España contra o exército de Napoleón, chegou ao Chile em Júlio de 1811. Depois de sucessivos golpes de Estado, a 15 de Novembro fez-se nomear presidente da Junta Provisional de Governo, e a 2 de Dezembro, após dissolução do Congresso Nacional, assumiu plenos poderes. O seu governo, abertamente separatista em relação ao aparato estatal de España, foi confrontado com a invasão que Virrey Abascal mandou realizar desde Talcahuano, desencadeando assim a Guerra por la Independência de Chile. Com sucessivos fracassos, coroados no Desastre de Rancagua, Carrera viu-se obrigado a retirar-se do Chile juntamente com os militares cidadãos que partiram temporariamente para Mendonça, com o objectivo de reorganizar a luta para a libertação da Pátria, país ao qual Carrera nunca mais voltaria, apesar das várias tentativas para conseguir recuperar o poder, contando, para isso, com o apoio de mapuches, corsários, oficiais napoleónicos e estado-unidenses, incluindo o próprio presidente dos Estados Unidos, James Madison. Estes factos inspiraram, mais tarde, o poeta chileno e premio Nobel, Pablo Neruda, nomeando-o o Príncipe de los Caminos, no seu texto de 1973, Confieso que he vivido, publicado pela editorial Planeta, Madrid, e no seu Canto general, México, Talleres Gráficos de la Nación, 1950.

A sua vida de militar a partir de 1815, foi decaindo progressivamente, até que, em 1821, depois de ser preso como montonero, foi fuzilado na Cidade de Mendonça . Carrera e a sua família eram descendentes de vascos3. Fonte: Diego Barros Arana, Historia General de Chile, Vol. VIII, Capítulo X: Revolución del 15 de noviembre; elevación de don José Miguel Carrera; disolución del Congreso Nacional (noviembre – diciembre de 1811).

Foi Presidente de la Junta de Gobierno de 23 de Júlio a 2 de Outubro de 1814. A seguir, fugiu, após a reconquista do Chile pelas tropas da Coroa de Espanha, lideradas pelo general Mariano Osório. A guerra independentista não teve quartel. As tropas chilenas organizavam-se em Mendonça, enquanto no Chile as guerrilhas, lideradas por Manuel Rodríguez (amigo de José Miguel e colegas de estudos na Real Universidade de San Felipe, ambos graduados em Direito, sendo Manuel Rodríguez Deputado por Santiago), a pedido do seu amigo José Miguel, matava invasores conjuntamente com a aristocrata proprietária da Hacienda de Maipo, da seguinte maneira – abro aqui um parêntesis para introduzir Paula Jaraquemada Alquizar ( Santiago Junho de 1768 – † falecida a 7 de Setembro de 1851), filha de Domingo de Jaraquemada e Cecília de Alquizar, pois foi uma das personagens femininas mais importantes na luta pela independência de Chile -: mal teve notícia da batalha de Cancha Rayada, ocorrida a 19 de Março de 1818, organizou os peões da sua hacienda de Paine (Maipo), enviando-os sob o mando do seu próprio filho, para se porem às ordens do general José de San Martín, a quem disponibilizou, também, cavalos, alimentos e apetrechos, paralelamente transformou a sua hacienda num hospital para soldados feridos em combate, instalando ai o general San Martín o seu quartel-general, quartel geral de patriotas em retirada.

Doña Paula era conhecida pelo seu carácter decidido e altivo. Houve uma ocasião, após as tropa independentistas abandonarem a sua hacienda, em que um pelotão realista fez uma incursão à sua propriedade procurando alimentos, solicitando-lhe as chaves da adega para retirar vitualhas, Dona Paula negou-se, e o oficial, que comandava o pelotão, ameaçou-a de morte, perante isto, dona Paula dirigiu-se aos fuzis, desafiando os soldados a cumprir as ordens. Surpreendido, o oficial recuou na ordem de fuzilamento, mas ameaçou queimar a casa, o que levou Doña Paula a lançar um braseiro aos pés dos soldados, dizendo-lhes: “¡Allí tenéis fuego!”. Os realistas abandonaram a hacienda estupefactos.

Dona Paula foi ao campo de batalha e lutou ao lado do seu filho e dos seus inquilinos. Não parecia ser digno de uma mulher da sua classe, mas relata o historiador chileno Jaime Eyzaguirre em vários dos seus textos, especialmente em Ideario y ruta de la emancipación chilena (1957), 29a. ed., (2007), Editorial Universitaria, ISBN 956-11-1904-8, que em tempo de guerra todo o braço, treinado ou não, é mais uma força que defende o que lhe pertence, ou aprisionando os inimigos, ou matando-os ou mandando-os para a fronteira mais próxima e perigosa, como eram Argentina, Peru, Bolívia, onde eram fuzilados. Uma Senhora que defende o que é seu, passa a ser uma Dama e infunde terror entre os inimigos, que fugiam dela como do diabo.

Os soldados do exército chileno tinham as suas companheiras ou camaradas, que lutavam com eles, heroínas que ninguém se lembra quando se fala da história do Chile. Denominadas as cantineras ou camaradas, por estarem sempre a abastecer de água, vinho e erotismo o seu soldado, companheiro de armas e amante ou namorado. Se é Paula Jaraquemada todos se lembram dela por ser uma Dama de luta; mas, das proletárias, apenas o escritor historiador Jorge Inostroza, se lembra de as mencionar no seu famoso livro Adiós al Séptimo de Linha, em que narra a guerra do Pacífico, uma das duas que envolveu o Chile com o Peru e a Bolívia nos anos 30 e nos 70. As duas ganhas pelos batalhões chilenos que levavam as suas cantineras com eles, que colaboraram com afinco nesse triunfo. Na data da tomada do Morro de Arica, na primeira guerra contra a confederação Peruana-Boliviana, ai estavam elas à sua espera para adoçar as suas vidas. Inostroza faz o texto, de sete volumes, mais leve, ao relatar que muitos jornaleiros, convertidos em soldados – entre a Independência e a guerra, pouco tempo houve para reorganizar as forças amadas e as cantineras eram consideradas parte do exército. Havia maridos que levavam as suas mulheres por não quererem ser traídos na sua ausência, sempre prolongada. É preciso lembrar que as cantineras eram jornaleiras: da mesma maneira com que procuravam trabalho pelos sítios por onde as levava o vento, assim também era a guerra um resguardo para a sua fome, a sua solidão e o dinheiro que ganhavam, era enviado à família que tomava conta dos seus filhos, nascidos no casamento ou com um afuerino qualquer ou migrante parcial, sempre em procura de trabalho, denominados também em Portugal ratinhos, caramelos, galegos que vinham procurar o sustento, como migrantes parciais. Sempre ficava uma lembrança, um filho qualquer nascido de uma mulher afuerina ou ratinha, dos momentos livres de trabalho. O entretenimento, quer no Chile, quer em Portugal, era o erotismo ou a satisfação da libido. A fonte destes acertos, além de romances como o meu muito querido livro de Eduardo Barrios, 1969: Gran Senhor y Rajadiablos, Nascimento; La Quintrala, de Magdalena Petit, 1939, Zig-Zag, e de Ciro Alegria, 1983: El mundo es ancho y ajeno, Alianza Editorial, e os impossíveis de comentar pela sua excelência narrativa, baseada em factos pesquisados como a Crónica de una muerte anunciada, de Gabriel García Márquez, Bruguera, 1982, e esses detalhados livros sobre a vida de uma heroína, que lutou com corpo e alma na conquista do Chile, de Isabel Allende 2006, Areté: Inés del alma mia (versão lusa Ai, Mama Inês, Difel, 2006). Textos que narram o papel da mulher durante a guerra e essa procura da satisfação da libido, como comentam Freud em 1923, Além do princípio do Prazer, ou Le moi et le ça, Payot, livro acessível em http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html, resultantes da psicanálise aos seus pacientes, académicos intelectuais e vários operários, que analisava por curiosidade, como método comparativo.

Por: Raúl Iturra

(Continua na próxima edição)

Pintura a óelo de Bejamin Subercaseaux

As Heroínas do Chile

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