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As cidades perdidas

Selecção Natural

1. Quando se percorrem países linguísticos, tem-se por vezes a sensação de não se ser mais que uma personagem ou figura absolutamente contingente, virtual, permutável com aquelas que são lidas. Como num leque de espelhos ou universos, em que o passado, o presente e o futuro se confundissem em pura possibilidade.

Assim, enquanto a mula bebe água no riacho, leio a frase de As cidades invisíveis de Italo Calvino: «O homem que cavalga longamente por terrenos bravios sente o desejo de uma cidade» e logo me vejo na garupa do cavalo do porta-estandarte Cristóvão Rilke (antepassado suposto do poeta) cavalgando, cavalgando, cavalgando pela noite, pelo dia, pela noite. Também aqui não há montanhas, apenas uma árvore. Árvore que de noite se incendiou com a mulher que salvei das cordas; no meu peito, «palavras luminosas» trazidas de longe. Mas porque estou cansado da lucidez da noite e preciso de uma luz mais doce, procuro outra árvore à sombra da qual me recosto. Sou então o Estrangeiro da Anabase de Saint-John Perse, «que passava». Converso com a donzela (nada romântica), que a meu lado se sentou. Coloco-lhe «bagas amargas» sobre as mãos: «Eu vos saúdo, minha filha, sob a maior das árvores do ano». “Nasceu um potro sob as folhas de bronze”. Diz ela, ou eu, não sei. Escutamos as folhas que nos escutam: e eis um grande barulhar numa árvore de bronze. A mula afasta-se um pouco. E alguém diz: «Eu vos saúdo, minha filha, sob o mais formoso vestido do ano».

2. “O desejo é a própria essência do homem”, escreve Espinosa na sua Ética. Na cidade de Doroteia, que «terrenos bravios» fizeram desejar, o Marco Polo de Italo Calvino descobre que o desejo é ou fruto de um cálculo cheio como um ovo de esturjão (contemplação interesseira da geografia humana da cidade) ou um rasto cumprido no deserto, muitos anos após conhecer o espaço vazio da sua praça: “Nessa manhã em Doroteia sei que não havia nenhum bem na vida a que eu não pudesse aspirar”. Que é como quem diz: nessa praça, um condutor de camelos conheceu a manhã da liberdade, antes da escolha e do cumprimento do desejo. Mas quem isto ler vê apenas um reflexo de um reflexo da cidade de Doroteia – o que vem a ser precisamente qualquer reflexão. Para a possuir (e perder) será necessário dirigir-se a ela, lê-la; ou inventá-la.

3. A verdadeira essência de Anastásia não se encontra na descrição da cidade. A sua descrição é como a imagem do corpo de uma mulher para o adolescente: desperta pequenos desejos logo sufocados pela mão ruinosa sobre uma torre de carne incendiada e vista de longe. (Cristóvão Rilke sabia que a morte encontrada no assalto à torre de nada valeria sem as pétalas em seu peito). Quem pelo contrário está em Anastásia (quem é aquele «homem»: Marco Polo? Italo Calvino?) não possui fantasmas lúbricos, está nela como quem entra numa mulher, como quem desce à terra, ou como quem mergulha na Substância espinosista: «A cidade parece-nos como um todo em que nenhum desejo se perde e de que nós fazemos parte, e como ela goza tudo de que nós não gozamos, só nos resta habitar este desejo e satisfazer-nos com ele». Porém, fazermos parte do todo tem esta consequência: «julgamos gozar por toda a Anastásia enquanto afinal não passamos de seus escravos».

4. Em Doroteia, Marco Polo descobre, na voz de um condutor de camelos, que a manhã da liberdade total só é algo na escassa realização do possível. Em Fedora, Marco Polo descobre para além da cidade real (isto é, a que advém incessantemente e por isso imperfeita), a cidade ideal (isto é, todas as cidades possíveis tornadas impossíveis na escolha). O museu de Fedora é, então, tal como os museus de todas as cidades, o lugar da nostalgia; mas não o lugar das escolhas irreversíveis, como os demais; antes o lugar da nostalgia de um futuro que nunca existirá, dos desejos perdidos por caprichos do destino. Curiosamente, Marco Polo acaba por compreender (o que revela a Kublai Khan) que ambas as cidades – a real e a ideal – se sustentam: somos quer os desejos frustrados do passado, quer os desejos impossíveis do futuro. E algo entre, talvez.

Por: António Godinho

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