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Aqui falta uma letra

Observatório de Ornitorrincos

Sempre me perguntei: E se um dia me faltasse uma letra? Se desaparecesse destas teclas? Se ficasse cansada e fugisse para distantes paragens? Será que aqueles que lêem regularmente esta página aceitariam este humilde escriba carente de tal unidade alfabética?

Que falta fará uma letra? Que falta fazem as letras? Sem letras falar-se-ia da mesma maneira? Há uma letra arredia destas frases. E elas aqui se juntam, linha atrás de linha. Pensaria eu talvez ser difícil escrever três mil caracteres sem saber de tal letrinha. Pensaria certamente de igual laia cada par de vistas que aqui descansam. E, Deus meu – apesar de ateu, quem rabisca ideias permite-se usar figuras estilísticas que fujam da verdade individual – ele aqui está. Na mesma caixa à direita de sempre, ainda que sem a maldita letra que fugiu das suas incumbências.

A leitura de livralhada e papelada avulsa exige de mim – e de si e de quem está aí a ler atrás de si – que escute e leia e sinta cada letra, cada palavra, cada frase, cada alínea. Julgará nesta altura a alma mais sensível a fraca habilidade deste que assina esta catrefa desligada de ideias que se espraiam aqui em papel prenhe de tinta. Vinte e duas letras em vez das vinte e três habituais. Faz-me falta? Também uma Inês deu literariamente à luz um “Fazes-me falta”. As letras estavam lá sem faltar nenhuma. Ainda assim fizeram-lhe falta. Uma faz sempre falta. E eu aqui sem ela.

Se me chamasse Margarida, teria de evitar falar em temas adjacentes a êxtases sexuais das mulheres lusas. Sem esse carácter escapista as revistas femininas seriam levadas à falência. “The Big It” é matéria privilegiada e preferencial na Marie Claire, na Maria e até na TV 7 Dias. Na ausência de letra de tamanha gravidade e urgência, a busca sistemática de arrebatares genitais seria assim rubrica tabu em análise feita pela mais premente parecença a Candace Bushnell nesta pátria.

Amiúde busquei fazer sentir às letras deste meu pc a necessidade de estarem sempre presentes em dia de labuta. Fútil tentativa a minha. De que temas tratará aquele que se embrenha na arte da escrita e lhe falta uma ferramenta? Cada letra – a desaparecida e as que ficaram – é mais necessária para mim que uma chave-inglesa a um rapaz que arranja bicicletas. Para terminar, um adeus, uma despedida. E a certeza de uma espera até à semana pela letra que desta esteve ausente e se aguarda que regresse.

Numa leitura cuidada reparará que, infelizmente e sem culpa minha, nunca está presente em nenhuma sentença desta página maldita, nem na mais rebuscada, a letra inicial das palavras que titulam lá em cima esta charlatanice semanal.

EU VI UM ANIMAL DAQUELES

A estima

Anda um país à beira-mar em busca da sua estima sem a achar. E ela está ali, na cercania da gente. Às vezes passa aqui. Nem sempre passa bem. A estima dá-se e tem-se. A minha, a tua, a dele. A estima é estimável. A estima que cada um tem de si está bem viva. Está na TSF, das dez da manhã em diante. Vive-se em país de infalíveis. Se as receitas milagreiras que se escutam dia a dia curassem a pátria, há décadas que se viveria mais bem aqui que na Suécia e na Dinamarca. A estima é um animal daqueles cuja letra inicial desapareceu. A estima anda fugidia e a puta da letra ninguém a viu.

Por: Nuno Amaral Jerónimo

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