Arquivo

Angola em Saragoça (VI)

Um dos ingredientes da honrosa, absoluta, responsabilidade que é escrever para o Público (com maiúscula) traduz-se por uma só palavra: “escrúpulo”. Escrúpulo pela palavra certa na dose certa. É da absoluta rectidão do verbo que se trata, da sua altaneira propriedade. O Governo ou a Economia, v. g., são sempre uma questão espiritual; e esta realidade do pérfido – porque superficial – laicismo em que vivemos é responsável pelo hic et nunc a nível mundial. Aliás, uma excelente ilustração do que acabo de dizer está num texto “ridículo” (não é ser-se desprimoroso, mas não encontro outro adjectivo) que um conjunto de académicos, há semanas, no “Público”, escreveu sobre Economia. Ficámos a saber o que é a amplidão de horizontes de alguns que habitam as “torres de marfim”… O leitor não pode alienar-se desta consciência.

… A intangível propriedade do verbo, disse. É que, no meu último artigo, precisamente na última linha, a palavra “única” está a mais. A sólida garantia de futuro para Angola é suprimir todo o ressentimento para com a que foi potência colonial. Só isso é que deve reter-se.

Não me cansarei de repeti-lo: confio absolutamente em José Eduardo dos Santos, porque se converteu à religião do perdão. E da espiritualidade desta postura emanará uma directriz para toda a vida nacional – que é infinitamente mais que política – angolana, a começar, creio bem, pelos ministérios do Interior e da Educação. Como li recentemente, “ou aprendemos a viver como irmãos, ou vamos morrer juntos como idiotas”. Declarou-o um visionário, o resultado cuja acção está também na eleição do grandioso Obama; declarou-o Martin Luther King.

A questão enuncia-se com uma surpreendente economia de palavra – mas o tema daria infindáveis bibliotecas. O eu-em-si não existe, diga-se desde já. O eu, desde logo, é um resultado, um corolário do antanho; ainda por cima interage com os outros, inter-depende, vive na sua época, no seu mundo. A alteridade é inerente a tudo o que existe; e pressupõe respeito, humildade. Sucede é que tais sentimentos, como uma cultura mínima, sine qua non, para a relacionalidade, por limitações das mais diversas, tais sentimentos, dizia, melhor, a ausência de tais sentimentos tem sido a razão para os mais hediondos conflitos.

Uma luminosa consciência e apreço pelo outro – nos antípodas da postura do colonizador-tipo (não importa qual ele tenha sido) – será o norte da lídima vida angolana, em Angola. Será a relação harmoniosa e fraterna com que Angola se imporá ao mundo. E se a estrita perspectiva do eu domina todas as relações humanas desde sempre, digamos – e a todos os níveis – o desafio do acolhimento – e o acolhimento do desafio – são o que Angola terá como seu programa vital e perene. Executá-lo-á, claro. Os desafios são, aliás, o penhor de progresso da História.

É que José Eduardo dos Santos, ademais, prometeu lutar contra a corrupção. Acresce a “esmagadora” votação que recebeu e o carinho com que uma substancial percentagem da população o quer num mandato a seguir ao actual. A forçosamente breve análise grafológica que fiz à sua letra, em Saragoça, deixou-me uma boa impressão, tal qual o referi a um casal amigo vindo de Angola.

É necessário ter vivido em Angola (eu fui “apenas” o alferes miliciano) para sentir o que é um paraíso; e o grande drama dos nossos compatriotas, compelidos ao abandono na sequência do 25 de Abril, traduz-se laconicamente: a interrupção do mais belo dos sonhos. Doutro modo: a nostalgia que leva a sucessivas edições de obras sobre o tema é a mais insofismável ilustração do que digo.

Mas mudemos de ângulo. Os mexicanos têm um ditado: “o petróleo foi um presente que o diabo deu ao México”. E os reiterados tumultos e drama nigerianos, bem como a trágica e comovente realidade timorense, tudo isso postula que digamos muito simplesmente: que o petróleo seja um presente de Deus a Angola. Dizemo-lo, do fundo da alma, por mais que uma razão: nenhum progresso pode basear-se num produto cujas cotações são tudo menos estáveis (apenas um exemplo); o nosso amor a Angola assim o determina.

Mais uma vez parece haver razão para o meu optimismo. Com efeito, o Presidente da República criou já uma comissão instaladora do FSA (Fundo Soberano de Angola). Preservar e maximizar as reservas financeiras do país – ainda por cima numa época tão insólita, digamos – só pode ser visto como a prospectiva atitude de um governante. O petróleo acautelará o futuro, em vez de estontear cabeças. Não se trata de “o dinheiro mal ganhado, água o deu água o levou”, sim de considerar que o dinheiro só o é por se tratar de uma emanação espiritual. Diferente interpretação é a ruína.

A espiritualidade a presidir aos destinos de uma grande Nação acautelará igualmente o património histórico recebido – nem que seja a muito singela capela de Nambuangongo. O Dundo, dou só um exemplo, tinha no seu género, o melhor museu de África. Imagino as destruições provocadas pelo conflito. Mas, Senhor Presidente, faça o obséquio – no mais tocante interesse de Angola e da Humanidade (lembre-se do Brasil) – de o restaurar no melhor e máximo que puder. A arte africana tem uma crescente cotação e alguém que lecciona História da Arte sente muito bem o que afirma, tendo toda a autoridade para o pedido.

Por mim rezarei por Angola. Fique certo disso, Excelência.

Dia de Natal, Guarda

Por: J. A. Alves Ambrósio

Sobre o autor

Leave a Reply