Arquivo

Angola em Saragoça (à guisa de balanço)

A visita ao pavilhão de Angola em Saragoça foi, portanto, uma experiência. Uma daquelas experiências que percute, fica gravada no mais fundo da consciência, é ponto de partida para todo o ser interior: emoção, memória, sentimento, intelecção, prognose… É a minha boa estrela, altaneira, a lembrar a sua privilegiada, indomável, existência.

Numa das primeiras operações que me foi destinada, mal acabado de instalar-me na ZIN (Zona de Intervenção Norte), o objectivo era “reconhecer” a zona da Fazenda Maria da Luz, área entre a estrada Luanda, Caxito, Carmona (Uíge) e o rio Úcua. O nível socio-cultural do emigrante português para aquelas paragens era, na generalidade, baixo (no Pango Aluquém um médico com vagar para ler sobre agronomia de café conseguia, como “passatempo”, triplicar ou quadriplicar a produção de “ouro negro”, relativamente ao colono indiferenciado). Mas a Maria da Luz foi uma emoção tão forte que, não raro, a revejo – e não porque esse muito belo nome era também o da minha “madrinha de guerra”, uma aristocrata das mais antigas famílias nobres de Portugal, de uma elegância (interior e exterior, claro), inteligência, ironia, presença… admiráveis.

Breve: a Maria da Luz foi para mim a identidade da guerra, uma dor d’alma que se sente in loco, não passível de ser apreendida por jornais, livros ou qualquer outro meio. Guerra é guerra, dizem os que por ela passaram. As construções da fazenda estavam todas esventradas.

À horrenda chacina dos nossos compatriotas, após Fevereiro de 1961, seguiram-se represálias que nada lhe ficaram a dever, com cabeças cortadas e, posteriormente, espetadas na ponta de estacas que se levantavam bem alto perante os nativos. Sucede é que estes conseguiram o seu objectivo, a independência, porque, desde os preliminares, transferiram a resolução do problema para o Sagrado. E, perante o Sagrado, nenhuma vitória é possível, tudo soçobra.

Nunca cheguei a saber quem era o proprietário da Maria da Luz, mas, em Angola, os nossos compatriotas deixaram uma realização absolutamente soberba. Aquela era para eles, uma terra de “sonho” – e o sonho apenas pede que o realizem. Naquele território sentiam que poderiam ser tudo quanto o quisessem. Liberto das limitações de uma metrópole, acanhada e sonolenta, sem letras ou títulos com os quais, de algum modo pudesse triunfar, o colono vivia agora noutro mundo e aquela era a “sua terra”. Todavia, em Luanda, encontrei uma boa livraria, a Lello. Outra faceta da existência do branco era, porém, hedionda: vivia como se apenas a sua comunidade existisse. O negro era uma coisa, res nullius – excepto para o trabalho, no qual era atrozmente explorado.

As posições antagónicas e irredutíveis conduziram ao que todos sabem – mas agora estamos já no pós-guerra. E o pós-guerra só pode ser um tempo de amor. Antes da eclosão da primeira conflagração mundial, em 1914, ir para a guerra era…uma alegria. Do lado francês havia quem considerasse que ia para umas férias – as primeiras da vida. Do lado alemão foram numerosos os artistas que pereceram no conflito – e essa sensação de incómodo é, agora, bem forte no museu Franz Marc, em Kochel-am-See, ali mesmo no sul da Baviera. Em Itália, em Fevereiro de 1909, no “Manifesto Futurista”, Marinetti apresenta a guerra como uma higiene (o “Manifesto” seria publicado em Paris no “Le Figaro”).

A Europa revelou uma profunda incompreensão pelo que se passara entre 1914-1918 e estatelou-se de novo, ignominiosamente, entre 39 e 45 (o que se tem passado de então para cá mostra que, aos europeus, não foi fácil aprenderem a lição – mas aprenderam algo de muito substancial). Muito para além de terem logrado o maior período de paz da História europeia, o que é verdadeiramente emocionante para mim é que, neste momento, um batalhão alemão, em tempo de paz, esteja aquartelado em solo francês. Soberbo além de todas as palavras – tanto mais que as idiossincrasias dos dois países nada, digamos, têm que ver uma com a outra.

Assim como os europeus caminham de mãos dadas e cada vez mais terão de fazê-lo lúcida e energicamente, assim também os nossos dois países. É por isso que tanto tenho insistido na superação do ressentimento por parte de Angola e no carinho pelo património aí deixado, a fortiori património artístico e espiritual. Não ter muçulmanos é uma bênção para Angola, porque se sabe, pelo menos desde o século XVI, o que são confrontos religiosos.

Mas se Angola não deve ter ressentimentos, os portugueses que agora para lá se dirigem a fazer negócio devem ter muito bem presente a consideração devida a quem matou a fome a tanto compatriota e o que aquela abençoada terra representou/a para Portugal. Sentimentos de trafulhice e displicência são absolutamente inadmissíveis e Angola não deve tolerá-los. Uma vigorosa comunidade de sentimentos está já constituída e isso – precisamente – deve ser ponto de partida para um aprofundamento cada vez maior. Tudo o que não seja assim é contra a natureza das coisas. A força que as ligações económicas, comerciais, industriais, financeiras, afectivas… possuem deve ser tida muito bem em conta; e uma comunidade baseada em laços de sangue não carece de invenção – é vigorosa de séculos.

Passados os conturbados tempos do pós 25 de Abril é hoje o momento de, v.g., constituir uma associação de amizade Portugal-Angola. Serei o primeiro a fazer parte dela.

Angola sempre integrou a minha ontologia desde que lá desembarquei em Setembro de 1963 e a visita a Saragoça fez explodir esse potencial, entrementes em letargia. Hoje dou-me conta da quantidade de obras que sobre Angola se publicam – vendem. Algumas pouco mais são que fotos a recordar – prestando em qualquer dos casos um serviço notável –, outras romanceiam. Uma universidade que, na área do Humanismo, tem carências gritantes devia pôr aqui os seus olhos. A Imprensa, quotidianamente, menciona ligações e outros aspectos da realidade; e que um visto para Angola demore tanto tempo a obter mostra bem a que nível de afecto e grandeza devem ser as relações.

O leitor que faz o obséquio de ler-me, que é pessoa inteligente e se sente inseparável da sua comunidade, já reflectiu bem nisso? Já lhe mediu o alcance? Não quer juntar-se a mim e a outras pessoas de inquestionável dignidade e responsabilidade, a fim de avançarmos para uma concreção de grandeza, de fraternidade? A perenidade das pátrias custa apenas a nossa dignidade, a nossa elevação. Vamos fundar a Associação de Amizade Portugal-Angola? Seremos os primeiros com a grandeza da nossa tranquilidade, e a tranquilidade da nossa grandeza. Os nossos dois países e nós bem merecemos isso.

Guarda, 23-II-09

Por: J. A. Alves Ambrósio

Sobre o autor

Leave a Reply