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Amigos são para sempre

Tresler

(“Uma espécie de invulnerabilidade quando dois amigos estão juntos”

– Jean Maisonneuve)

Quando se fazem férias fora, nomeadamente em ambiente de hotel, parece a certa altura que não vemos senão casais, quase sempre isolados no seu núcleo, nos seus hábitos (solitários) de refeitório + quarto + praia + convívio com as crianças. Alguns casais viajam em grupo para favorecer as conversas e os passatempos, uma convivialidade que fuja do normal, que não deixe os casais isolados neles próprios. Mas muitas vezes é o aperto do quarto, reduzido espaço comum por alguns dias, a pôr os nervos em franja quando as relações são mais difíceis ou estão mais gastas, nomeadamente nos casais de meia-idade. Os que viram os laços de amizade escaparem-lhes, se algum dia existiram.

Amigos, é isso mesmo. O termo está ele próprio gasto e a precisar de polimento, em tempos de Facebook, que inflaciona os “amigos” às centenas e distorce de maneira incrível os sentidos mais convincentes da palavra “amizade”: “a comunicação, a entreajuda e a fidelidade” (cito Jean Maisonneuve). A amizade é aliás hoje sacralizada a um nível muito elevado, patamar que este autor considera ser superior mesmo à do amor-paixão, este sujeito ao imponderável e ao irracional. Uma amizade pura raramente resiste a uma deslealdade, ao alheamento ou à desconfiança, o que pode pelo contrário espicaçar ainda mais uma paixão amorosa. A amizade, ao contrário do amor, poderia ser o lugar da realização do nosso “ser múltiplo”.

Há até pensadores que referem ser hoje um tempo em que a amizade está elevada ao nível a que o amor aparecia elevado no século do romantismo e em boa parte do século XX. E que, depois de muitas décadas em que a literatura e o cinema celebraram a força do amor-paixão, o tempo do romantismo terá mesmo acabado. A descrença no casal como lugar da felicidade fez pois elevar o valor da amizade. Seria hoje o tempo das tribos diversas pelas quais as pessoas vão circulando sem se prenderem necessariamente ao compromisso do casamento de amor. Numa sociedade em que o fenómeno da realização profissional provoca novas cumplicidades e o valor da mobilidade influencia tudo, em que se fala tanto de casamento quanto menos ele interessa realmente as pessoas, ainda causa no entanto perplexidade que seja possível conceber uma sociedade que viva sobretudo “em amizade”, para cá ou para lá do casamento.

Um dos contextos em que criamos mais amigos é o trabalho mas a amizade no trabalho é seguramente uma história mal contada: é o grau zero da amizade, que soçobrará se qualquer conflitualidade ou choque de interesses se desenhar no relacionamento dentro da instituição. Basta que uma promoção nos pareça injusta ou que os nossos amigos de trabalho pareçam estar a interferir nas nossas funções, a mostrar visões antiquadas ou a frustrar as nossas expetativas. A empresa pode desenvolver amizades mas a abertura dentro dela à crítica e à mudança pode estragar tudo. Ora, sendo a amizade de tipo igualitário, liga-se mal ao quadro hierárquico que se vive em cada local de trabalho. Dentro de uma relação profissional a amizade terá pois de ser bastante “controlada”.

Vizinhança, homofilia e contexto social análogo são claramente os critérios habituais para a constituição de amizades, realidade que às vezes não parece dar-se bem com algum idealismo à volta do modo como nos pronunciamos sobre a amizade. São realmente pouco frequentes amigos do outro sexo ou de idade diferente, de classes sociais diversas ou que não estejam no nosso habitat: esses fatores diferenciais são em geral óbices e não fatores favoráveis, embora o nosso tempo defenda esse liberalismo.

Voltemos pois de férias e encontremo-nos com os nossos verdadeiros amigos, de bairro ou de meninice, de café ou de supermercado. As amizades que ficam da juventude são em geral as mais fortes porque marcadas por experiências notáveis de cumplicidade, na escola ou nos tempos livres. Espera-nos também o nosso amigo fiel, o cão, a quem teimamos em chamar amigo apesar da diferença abismal que separa um dono de um escravo que não escolheu o seu dono e que sobrevive em geral isolado dos da sua raça e com regras estabelecidas pelo outro “amigo”. Que amizade humana sobreviveria a esta relação? O cão poderá ser “o melhor amigo do homem” mas será o homem um bom amigo do cão? Não, uma relação unilateral como esta não merece este nome. A expressão “animal de companhia” marca aliás uma relação de serviço que nunca seria assimilada àquela ideia sublime. No entanto, antes de chegarmos a casa, já todos vamos a pensar “no nosso Benny”, que nos vai saltar e pôr as patorras no peito: neste caso amigo é aquele de quem temos saudades.

(L’amitié – une nouvelle aventure, número especial do Nouvel Observateur, dezembro 2000)

Por: Joaquim Igreja

Comentários dos nossos leitores
Maria Rosa Igreja mariarosaabreu@hotmail.com
Comentário:
Grande verdade, mas tambem ás vezes quem temos á espera em casa são apenas esses amigos, que são ao fim e ao cabo a nossa familia.
 

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