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Amanhã é pretérito!

Secundino Neto nasceu com a ajuda das mãos de um socorrista, entre solavancos, gemidos e cheiro a gasóleo mal queimado numa decrépita ambulância a quinze quilómetros do hospital.

Mesmo ali no cruzamento das alminhas, Secundino viu pela primeira vez a luz do dia se é que a expressão pode utilizar-se às três da manhã de uma chuvosa noite de outubro, sem lua nem estrelas visíveis. Só um dilúvio de água dentro e fora daquele paralelepípedo metálico e oco da velha ambulância.

Secundino nasceu rijo como um pero e anunciou a plenos pulmões o desespero do desaconchego que encontrou no mundo que não conhecia.

Maria das Dores paria assim um ano depois do quarto, o quinto filho do quarto pai.

Este era o segundo filho que Maria das Dores concebia do mesmo homem, proeza única na sua história de mãe. Nunca tinha repetido um progenitor a não ser este, do qual paria já o segundo filho. Nas reviravoltas da natureza e das necessidades humanas aos 30 anos ainda carnais e no seu caso também económicas por uma parca reforma que repartia já com tão vasta prole, tinha-se “ajuntado” com este homem 40 anos mais velho e pai do pai do seu terceiro filho. Foi esta a razão que o conservador prior da aldeia, e para castigo e lembrança da mãe e purga de futuros pecados da criança, “aconselhara” como obrigatório caso quisessem batismo para o rapaz. Secundino, por ser o segundo daquele pai, e Neto por ter irmãos netos do seu próprio pai. Assim se lavrou para sempre no Registo Civil o nome e apelido completo do petiz: Secundino Neto dos Prazeres e Morais! Prazeres da mãe e “E Morais” do pai.

A história do parto de Maria das Dores correu a região como fogo em pasto seco.

O nome secular do cruzamento das alminhas, assinalado por uma cruz de pedra e uma inscrição em azulejo já esbocelado que dizia: “ó vós que ides passando, lembrai-vos de nós, que estamos penando” a recordar aos vivos que era preciso rezar pelas almas que aguardavam no purgatório a “expurga” de faltas cometidas neste Inferno.

Entre os gemidos de Maria das Dores, o choro do garoto e os berros do parteiro de ocasião e do condutor atarantado, aquela inscrição parecia agora um trocadilho errado que deveria dizer, “ó vós que estais penando, lembrai-vos de nós, que estamos descansando”. Paradoxos!

Secundino cresceu como nasceu, entre dores, maus odores e solavancos de vida, numa clara demonstração que é preciso penar para viver num mundo longe de tudo e em que nem tudo muda. Muda o sinal de televisão para digital, mas não mudam nunca as dores de parto, nem a falta de Serviços de Saúde condignos à vida digna. A carrinha que fazia o percurso desde a enxerga de Maria das Dores até à maternidade mais próxima teria de percorrer 70 quilómetros. Passou no percurso por dezenas de casas decrépitas, antigos postos de saúde agora fechados. Passou até por três ou quatro Centros de Saúde àquela hora fechados, culpa dela que resolveu ter o filho em hora desatinada com os horários dos serviços.

Anos depois, poucos, Secundino fez com a mãe o mesmo percurso daquela noite. Agora de dia, na mesma carrinha ainda mais decrépita mas com a estrada um pouco mais esburacada. Secundino precisava de ter um Número de Identificação Fiscal, não fosse algum dia achar que nada devia ao Estado protetor que tanto o tinha ajudado a nascer.

Passaram nas mesmas vilas onde procuraram sítio para nascer, agora à procura de local para ser numerado. O mesmo resultado, casas fechadas com placas despolidas onde ainda se lia… Repartição de Finanças. Ao lado, folhas A4 que diziam: Serviço Definitivamente Encerrado.

A velha carrinha desistiu de percorrer caminhos. A 15 quilómetros do local de registo caiu-lhe na estrada o velho motor, esvaindo-se em óleo quente no preciso local onde Maria das Dores deixara cair no mundo, esvaindo-se em sangue e líquido amniótico, Secundino. Cansada, Maria das Dores pegou no filho e saiu da velha carrinha pela última vez.

Virou as costas ao destino, sem uma palavra, sem um gemido e já sem dores para sentir. Apertou a mãozinha do filho e voltou para trás, a pé, sem urgência de chegar a destino nenhum. Olhou o horizonte e disse como se o filho a pudesse entender… Se precisarem de crianças que as arranjem eles, se precisarem do teu pão que façam eles o caminho e venham eles buscá-lo! Duvido é que os carros em que se passeiam consigam chegar ao cruzamento das alminhas.

Ala rapaz!

Por: Júlio Salvador

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