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Alguma coisa para dizer

Freud tornou os seres humanos mais interessantes

Quando começou a ler Freud, Wittgenstein terá dito que finalmente encontrara alguém com alguma coisa para dizer. Lá isso tinha. Freud era um génio e tem uma obra genial. Há dez anos, num momento de impaciência, comprei as obras completas, na edição azul-clara, em 24 volumes, da Hogarth Press, com a tradução discutível mas valiosa de James Strachey, com a colaboração de Anna Freud. Foi das decisões mais felizes e férteis da minha vida.

Ganha-se muito em ler Freud na totalidade. Fica-se não só espectador como participante e sujeito de um glorioso acto de grandeza intelectual, que é uma tentativa de compreensão do que move o ser humano. Não é nem filosofia nem literatura nem ciência: é menos do que isso e mais do que isso. É um homem vorazmente curioso e inteligente, com uma imaginação tão vasta como disciplinada, a braços com todo o humano, procurando ser o mais minucioso e metódico possível, na esperança talvez louca de poder vir a ser concreto e útil.

Freud acrescentou à vida reflexiva uma maneira de ver o mundo que somos ou poderemos ser. Se as aplicações práticas e clínicas funcionam como ele desejou é uma falsa questão. Dalguma maneira funcionam. O que importa é que os seres humanos passaram a poder ser pensados de uma maneira mais atenta, mais rica e mais digna.

Ler Freud na totalidade é viver um pensamento épico cuja ambição nunca assusta, porque assenta numa tal quantidade de pequenas e grandes observações e perguntas que logo se afasta, caso a caso e ponto a ponto, qualquer medo de preguiça totalitária e do esforço violento de imposição teórica que costuma acompanhá-la. Nesse sentido, Freud está sumptuosamente inocente.

Mas, mais do que isto tudo que se possa dizer, o que mais interessa é que Freud tornou os seres humanos mais interessantes. Incluindo os que talvez não sejamos e os que apaixonadamente não queremos ser. Porque, antes de Freud, muitas dessas escolhas deliciosas não existiam, muito simplesmente. E, se é complexos que queremos ser, já não passamos sem ouvir a tal coisa alguma que Freud tinha para dizer.

Por: Miguel Esteves Cardoso

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