Pouco a pouco, a Igreja Católica vai abandonando a sua canga mitológica. Vimos cair o conceito de Purgatório e agora admite-se que o próprio Inferno tem mais de metafórico que de realidade. Giovanni Papini, falecido em 1956, tinha escrito sobre o Diabo e concluído que a Salvação se não poderia concluir sem a adesão do principal inimigo ao campo de Deus. Hoje, a figura do Diabo é um assunto sobre o qual a Igreja Católica prefere não insistir. Porquê? Porque é evidente nos textos que os crentes dizem sagrados a sua origem múltipla, o seu carácter muitas vezes metafórico, a arbitrariedade da inclusão de alguns textos e da exclusão de outros. É que a Igreja Católica não pode proibir hoje, como o fez no passado, a análise científica e desapaixonada dos textos que ela entende serem sagrados e essa análise pode fazer cair muitos mitos e abalar muitos dogmas. É por isso que o catolicismo, se quis sobreviver, teve de evoluir, como foi evoluindo o conhecimento e a informação dos seus crentes.
Um jovem palestiniano, vestido com a sua melhor roupa, despede-se da família. Um fotógrafo do Hamas regista os últimos momentos numa câmara digital: os olhos muito negros, a barba rala, o blusão da Adidas, os sapatos Nike, as calças Levis; debaixo do blusão, ainda não fechado, um cinto de bombas. Sabe que a sua família vai ser depois protegida pelo Hamas e acredita, com todas as suas forças, que depois da sua morte o profeta Maomé o vai agraciar com os corpos impolutos de setenta virgens. Algumas horas depois faz-se rebentar numa discoteca de Telaviv, matando com ele algumas dezenas de jovens israelitas da sua própria idade.
Como encara um não crente, ou um céptico, para não dizer um ateu, a parafernália das religiões? Como vê as questões do Diabo, do Inferno, do Purgatório, da virgindade de Maria, da ressurreição de Jesus? Como fazê-lo aceitar os rituais, os sacramentos, a Fé? E que dirá então da crença do jovem palestiniano nas setenta virgens que o esperam no além? Esse não crente, ou até ateu, resumirá tudo numa única palavra: grotesco. Ou então recusar-se-á a falar sobre o assunto, de forma a não ter de se sujeitar às consequências daquilo que pensa – mas não deveria ter de o fazer no Ocidente, na Europa.
A defesa contra o grotesco tem consistido, no caso da Igreja Católica, na depuração e actualização das suas crenças e dos seus ritos. No caso do Islão a resposta é a que vemos: repressão dos não crentes, cristalização das doutrinas num passado mitológico, histeria de massas.
Num mundo como o de hoje, quando o espírito crítico ocidental se cruza com a idade média as consequências só podem ser nefastas. E agora, pergunto eu, quem tem de mudar, o Islão, aproximando-se do século XXI, ou o Ocidente, regressando à Idade Média?
Sugestões
Um livro – Da Democracia na América, Alexis de Tocqueville (Principia, Publicações Universitárias e Científicas), página 225 e seguintes.
Outro livro – Mil Anos de Felicidade, uma história do paraíso, Jean Delumeau (Terramar).
Um link – http://www.alternet.org/story/31884/
Um filme (cortesia da Paula Carvalhosa) – A Lenda dos Punhais Voadores, uma orgia de cores, som e movimento. É que há mais na vida para além do fácies barbudo e intolerante de um fundamentalista.
Por: António Ferreira