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Agosto: poesias e frio no rosto

Nos poucos dias que resgatei à agenda para descansar, encontrei-me com as chuvas de Agosto. Os passeios pela praia, ao sol, com o mar aos pés e os biquinis ao lado deixaram de ser opção. Lá se foram os sonhos de verão. Mas quando a vida nos dá amargos limões, o melhor é reagir e preparar uma fresca limonada. Assim, optei por (re)ler a poesia eternamente adiada, rebuscar nas estantes aqueles poetas esquecidos e a força das suas palavras.

Comecei pela cascata de sons de Eugénio de Andrade e sorvi as suas paixões:

«Vê como o verão

subitamente

se faz água no teu peito,

e a noite se faz barco,

e a minha mão marinheiro»

E embalado nestas marés de palavras, marinheiro na água revolta dos poemas, fui descobrir Pedro Homem de Melo, o criador de “Povo que lavas no rio”, acabado de reeditar com “Poesias Escolhidas” pelas edições ASA.

«Quando virás na vaga proibida,

Com maresia e vento ao abandono,

Pôr nos meus lábios um sinal de vida

Onde haja apenas pétalas e sonho?

Com o teu olhar de nuvem ou cipreste,

Com uma rosa oculta por florir,

Se te chamei e nunca mais vieste

Quando virás sem que eu te mande vir?

Quando, quebrando todos os segredos,

Na aragem que a poeira deixa nua,

Virás deitar-te um pouco nos meus dedos

Como o Sol, como a Terra, como a Lua?

E porque a minha boca te sorrira

Tentando abrir uma invisível grade,

Quando virás, sem medo e sem mentira,

Dar ao meu corpo a sua liberdade?»

Por vezes andamos em caminhos atapetados de erva daninha. Leituras superficiais de títulos de jornal, romances de cordel, coisas banais. Nesta sociedade da comunicação nem sempre veneramos da melhor forma as palavras. Falta cumprir o sonho de José Gomes Ferreira: ” Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias…”. São tantos os que escrevem, tão poucos os que iluminam as palavras por dentro. Neste chão de palavras é preciso cavar fundo e arrancar a enxada as palavras de homens com raiz, como por exemplo, Miguel Torga:

«Agora que o silêncio é um mar sem ondas,

E que nele posso navegar sem rumo,

Não respondas

Às urgentes perguntas

Que te fiz.

Deixa-me ser feliz

Assim,

Já tão longe de ti, como de mim.

Perde-se a vida, a desejá-la tanto.

Só soubemos sofrer, enquanto

O nosso amor durou.

Mas o tempo passou,

Há calmaria…

Não perturbes a paz que me foi dada.

Ouvir de novo a tua voz, seria

Matar a sede com água salgada».

Fascinante a forças das palavras cruas. E, nesta viagem pelas poesias escolhidas, encontramos sempre parceiros de viagem que nos surpreendem. Sempre ouvi falar da prosa de Mia Couto, mas foram as suas palavras derramadas em verso que me aqueceram nas tardes de chuva:

«Magoa-me a saudade

do sobressalto dos corpos

ferindo-se de ternura

dói-me a distante lembrança

do teu vestido

caindo aos nossos pés

Magoa-me a saudade

do tempo em que te habitava

como o sal ocupa o mar

como a luz recolhendo-se

nas pupilas desatentas

Seja eu de novo a tua sombra, teu desejo,

tua noite sem remédio

tua virtude, tua carência

eu

que longe de ti sou fraco

eu

que já fui água, seiva vegetal

sou agora gota trémula, raiz exposta

Traz

de novo, meu amor,

a transparência da água

dá ocupação à minha ternura vadia

mergulha os teus dedos

no feitiço do meu peito

e espanta na gruta funda de mim

os animais que atormentam o meu sono».

Deslumbrante esta «Saudade» africana de Mia Couto que se desprende do seu único livro de poemas, “Raiz de Orvalho e Outros Poemas” editado pela Caminho. Este homem contador de “estórias” revela-nos na sua palavra quente e pura, a riqueza cultural das gentes simples de Moçambique.

Assim, nesta viagem que parece infinda, esquecemos o choroso verão e encontramos poesia no cheiro a terra molhada. Espero que esta minha partilha lhes desperte o desejo de mais viagens!

PS: Voltando às coisas mundanas. Entretido com a poesia, perdi o contacto com as polémicas. Desconfio que sou o único português que não faz ideia do que está gravado nas famosas cassetes roubadas ao Correio da Manhã. Mas tenho que dizer a verdade… que se lixe!

Por: João Morgado

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