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Abril suave

Jogo de Sombras

No 25 de Abril eu tinha cinco anos. Durante algum tempo o meu conceito da revolução não passou de um primário exercício de lógica. Estava uma carrinha de mercadorias, que acidentalmente resvalara e capotara na véspera, de rodas para o ar no outro lado da minha rua. O meu pai, ferroviário do turno da noite, voltou de manhãzinha com a proclamação: caiu a ditadura. Para mim a camioneta tombada no atoleiro chamava-se, portanto, ditadura. Acabei por suspeitar que não eram a mesma coisa, embora as quedas tivessem sido simultâneas, assim que o veículo foi removido mas não cessou a euforia, no bairro inteiro, pela cambalhota da ditadura. Mesmo quando já iam passadas largas semanas desde a ocorrência, o meu irmão doze anos mais velho festejava fervorosamente, incessantemente, com o grupo de guedelhudos que antes conspirava à sorrelfa nas vizinhanças. Aprendi com o tempo que o que aconteceu foi uma revolução. Assim, com as letras todas – a não ser que exista um sentimento de má-vontade contra a História. Uma revolução que trouxe profundas mudanças em todos os níveis da vida do país, que permitiu devolver a cidadania e as liberdades ao exercício colectivo e quotidiano, que abriu horizontes à cultura, à ciência e à economia, que reconciliou a relação de Portugal com o mundo. Uma revolução que, por isso, legou o caminho à evolução em inumeráveis (embora nem todos, infelizmente) indicadores de desenvolvimento. A evolução foi o resultado da revolução e é improvável que acontecesse sem ela, apesar dos excessos próprios da ruptura, primeiro, e da catarse, a seguir. O que não justifica que se oculte uma com a outra. Mas foi o que a publicidade governamental – «Abril é Evolução» – profusamente distribuída acabou por tentar, insistindo numa noção de progresso natural, gradual, pacífico e sem sobressaltos. Do ponto de vista do marketing foi uma campanha muito bem conseguida. Do ponto de vista da História tratou-se de uma despudorada ablução. Quis-nos fazer crer que o país contemporâneo é o resultado, em números, da consolidação do Estado democrático. Mas subtraiu o começo: a luta que, com os seus sucessos e defeitos, êxitos e falhas, disparates e rasgos de inteligência, tornou possível o regime em que vivemos. A imagem estilizada dos cravos – nenhum vermelho, note-se – sublinhou essa premeditada leitura actualizada, suave, harmoniosa, aprazível e esteticamente correcta que se pretendeu dar do 25 de Abril. O conceito de revolução pode estar velho e ultrapassado, escondendo esqueletos no armário e não trazendo grande rasgo para o futuro. O próprio sentido das comemorações pode ter-se esvaído, em cada Abril passado, numa massa cada vez menos espontânea, cada vez mais parecida com uma missa campal pela vaga liberdade de cravo ao peito. Os discursos podem estar repletos de banalidades e lugares-comuns, como se viu na indigente «sessão solene» da Assembleia Municipal da Guarda. Mas essas debilidades não podem dar à direita conservadora hoje no poder a legitimidade para reescrever o guião sobre o passado colectivo recente, como se das três dimensões do 25 de Abril – a do golpe militar, da deposição do velho regime e da ratificação popular nas ruas; a do período profundamente revolucionário que até à Constituição de 76; e a da consolidação do regime democrático – apenas a última fosse digna de figurar na História. Já no Portugalzinho destituído há trinta anos essa era a lógica: os manuais da escola só impingiam a «mais linda história do mundo» feita de lengalengas que desvirtuavam a realidade para ficar de bem com os costumes. Abril sempre? Agora mais que nunca.

Por Rui Isidro

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