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Aborto – 2ª parte

Coisas..

Maria, 42 anos, licenciada, casada em comunhão de bens com Fernando, eurodeputado em Bruxelas. Mãe de dois filhos com 22 e 20 anos, respectivamente.

O teste de gravidez dera positivo. Deitada na cama, fumava um cigarro, pensativa. Sentia-se estranhamente calma, naquela manhã. Ainda era cedo, pensou. Tinha tempo. Aliás, tempo era o que não lhe faltava desde há já longos meses. A presença do marido em Bruxelas, a partida dos filhos para o estrangeiro, a interrupção precoce de uma carreira docente, tinham feito dela não mais que a esposa do Sr. Dr. O tédio e o excesso de tempo livre tinham-na levado a uma intensa vida social de que se orgulhava. Não considerava fútil nenhuma das actividades a que se dedicava: o apoio à biblioteca local, a leitura, a participação nos projectos da igreja, a colaboração com o partido, eram opções que havia feito, sem se arrepender. Nos últimos tempos, com a aproximação do referendo do aborto, tinham-se multiplicado as viagens a Lisboa. Gostava imenso de ir a Lisboa. Sorriu com o pensamento. Se gostava de ir a Lisboa! Pensou em Ricardo, 10 anos mais novo, casado, cheio de vida, bonito e interessante. Haviam-se conhecido 6 meses antes na sede nacional do partido; a empatia fora imediata e quando deu por si, já o coração batia forte sempre que se aproximava o dia de mais uma viagem. A primeira tarde de amor tinha sido gloriosa. A mais gloriosa de toda a sua vida que, nesse aspecto, nunca tinha sido especialmente gratificante. Com Ricardo era diferente. Com Ricardo tudo era diferente.

Maria olhou o relógio. 9 horas, apenas. A reunião era às 11, na sede do partido. Tinha sido dela a ideia de se organizarem localmente em campanha contra a despenalização do aborto. Maria tinha ideias bem sólidas acerca do assunto. E agora o teste de gravidez dera positivo. Um nó no estômago provocou-lhe um esgar que a incomodou. Ela sabia que o marido não vinha a casa há já 3 meses. Sabia que Ricardo estava à beira de ser pai pela segunda vez. Imaginou o cenário, o futuro, a desestruturação de todo o seu mundo e, por um momento, sentiu o pânico a invadi-la. Equacionou as hipóteses pela milésima vez como fazia desde que mês e meio antes suspeitara que podia estar grávida. Tinha apenas duas certezas: não era Fernando o pai daquele filho e não queria que nada daquilo estivesse a acontecer.

Daí a dois dias o marido chegava de Bruxelas e iriam a Lisboa participar no 1º comício da campanha contra a despenalização do aborto. Ricardo iria lá estar também. Sentiu-se mal com o pensamento. Nenhuma das saídas a satisfazia E logo agora que sentia estar a passar uma das melhores fases da sua vida!

Maria levantou-se da cama, vestiu-se com calma, pintou-se e penteou-se. Viu-se ao espelho e gostou do que viu. Dirigiu-se ao telefone, ligou para uma amiga e inventou uma desculpa para não ir à reunião. Meteu-se no carro e decidiu tirar o dia para ela. Iria passear, almoçar fora, ler e pensar.

Ela sabia que tinha que tomar uma decisão.

Continua…

Por: António Matos Godinho

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