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Aborto 1ª parte

Maria, 36 anos, 7 filhos, 5 dos quais ainda vivos.

Acorda sobressaltada nessa manhã. A regra já devia ter vindo há uma semana e nada… Decide ir à médica, mas sabe que, para marcar consulta terá que o fazer com bastante antecedência. É preciso pedir mais uma vez à vizinha que lhe fique com os dois mais novos. Quatro euros para o autocarro, um dia perdido no trabalho; nos trabalhos, mais propriamente, desde que arranjou aquele outro meio-dia em casa da professora. O marido dorme ainda, com a ressaca de mais uma noite passada na taberna. Não a incomoda esse facto, pois sabe que, quanto mais horas dormir, menor será a probabilidade de lhe bater. Ou de querer ter sexo com ela, o que é praticamente a mesma coisa. Já a doutora lhe disse vezes sem conta para usar sempre o preservativo, mas ele recusa. Diz que não gosta, não é natural e que, para além disso, vai contra a lei de Deus. A lei de Deus! Ele, que nem vai à missa. Garante sempre ter cuidado, sair sempre a tempo, mas são mais as vezes em que adormece em cima dela depois do serviço feito. Empurra-lhe o corpo mole e morto para o lado, vai à casa de banho e lava-se vigorosamente, fingindo ignorar a vergonha, a repulsa e a dor que sente no sexo. E agora isto.

Maria sabe que, se estiver grávida, não quer este filho. Sente remorsos com o pensamento. Precisa de falar a alguém mas esse alguém não existe. Quando foi do 4º. filho, confessou-se à irmã. Foi o pior que podia ter feito. Saiu de lá com uma carga de culpa que a fez sentir-se uma criminosa. Apenas por ter dito que não o queria ter. O 5º. e o 6º., mortos. Nasceram enfezados, coitadinhos. Os médicos bem lhe disseram que aquelas crianças precisavam de cuidados especiais. E remédios. Mas onde havia ela de ir buscar o dinheiro? Morreram, coitadinhos. Sente-se mal e afasta o fantasma. Ela tem que falar com alguém. Decide ser sincera com a médica, falar-lhe do medo de estar grávida outra vez, dizer-lhe que não o quer, pedir-lhe ajuda. Sente um arrepio na espinha. A médica não é propriamente uma amiga, apesar de simpática. Ajudá-la-á? Compreendê-la-á?

Enquanto acorda os pequenos, dá ordens aos mais velhos, ajuda outros e carrega no colo o mais novo. Não há dúvidas no seu espírito. Não quer mais este filho que pode vir aí. Se a médica não a ajudar ela sabe bem onde pode ir. Onde vai ela arranjar 400 euros? 200, sem anestesia. E o perigo das infecções, das hemorragias. Maria sabe da outra, que morreu. Toda a gente soube. Foi uma vergonha para a família, para o marido. Maria tem medo, mas está decidida. Para a semana irá à médica. Pode ser que ela ajude.

Não lhe passa uma única vez pela cabeça que pode ir parar à cadeia por isto.

Continua…

Por: António Matos Godinho

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