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Abandono de Funções

Quebra-Cabeças

Acabo de ouvir Paulo Portas acusar repetida e enfaticamente António Guterres de ter “abandonado funções” em 2001, querendo assim desvalorizar o recente apelo deste a uma maioria absoluta do PS nas próximas eleições. Este argumento é mais um infeliz exemplo da falácia ad hominem (atacar a pessoa e não o argumento em si), a mesma de que ele próprio foi vítima no debate televisivo com Francisco Louçã. Ficámos assim sem saber o que pensa Paulo Portas da necessidade de uma maioria absoluta do PS, mas fomos informados, e isto tem o seu valor, da falta de qualidade do seu discurso.

Se bem me recordo, o último governo de António Guterres foi muito mau. Levou o défice do orçamento geral do Estado a níveis desastrosos (embora posteriormente ultrapassados) e abriu uma crise governativa que se veio a prolongar até hoje. Diria até que foi o pior governo dos últimos vinte anos, com a óbvia excepção dos governos de Durão Barroso e de Santana Lopes.

Mas quando se diz que ele, Guterres, abandonou o barco em Dezembro de 2001, esquece-se que tinha acabado de sofrer uma pesada derrota nas eleições autárquicas, o que até permitiu a Durão Barroso reclamar mais uma vez a sua demissão. Foi o que Guterres fez, e não o devia ter feito, até porque assim entregou o país numa bandeja, entre outros, a Paulo Portas. Mas querer transformar este gesto num “abandono de funções”, crime tipificado no artigo 385º do Código Penal, é uma ofensa à inteligência do eleitorado e um abuso de linguagem. Já agora: não foi Santana Lopes quem ameaçou, há umas semanas atrás, abandonar sem mais o cargo de primeiro-ministro?

Deveria Paulo Portas, até por coerência, agraciar-nos com a sua opinião sobre a partida de Durão Barroso para a Comissão Europeia. Foi uma fuga? Foi um abandono? Foi um alívio? Poderia também elucidar-nos sobre o que acha que deve acontecer quando um primeiro-ministro vê a sua base social de apoio esboroar-se e percebe que o país está farto dele. Deve fingir que nada aconteceu e obrigar-nos a todos a aturá-lo até ao fim da legislatura, como gostaria de ter feito Santana Lopes?

É curioso, ainda quanto ao segundo governo de António Guterres, que as críticas se concentrem quase todas na fuga, no abandono do país à sua sorte – e não em actos governativos concretos. Ou que, quatro anos depois, essa suposta fuga represente o melhor do argumentário eleitoral da direita. E é uma maneira, mesmo que involuntária, de valorizar o homem, pela falta que faz, à custa dos que se lhe seguiram.

Por: António Ferreira

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