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A última viagem de Saramago

António José Dias de Almeida considera que o romancista tem lugar entre os maiores vultos da literatura portuguesa, como Gil Vicente, Camões ou Pessoa

«A obra de Saramago é um marco, uma das páginas da história da literatura portuguesa, tal como Gil Vicente, Fernando Pessoa ou Camões». As palavras são do guardense António José Dias de Almeida, que viu partir o Nobel da Literatura com «muita pena e mágoa». «Estamos a falar de um grande vulto universal», considera o antigo professor do ensino secundário, para quem o melhor livro do romancista é “O ano da morte de Ricardo Reis”.

Constatando que aos 87 anos estava ainda «muito activo» a nível intelectual, António José Dias de Almeida lamenta que Saramago tenha deixado um livro a meio: «Todos sabiam que estava já bastante debilitado», refere. E, numa viagem pela obra do Nobel português, recua até 1980, o ano de “Levantado do Chão”, para falar num livro «com muita garra» e em que se percebe que «a sua obra seria cada vez mais na linha da intervenção». Em “O ano da morte de Ricardo Reis”, Saramago «mistura um encontro entre Ricardo Reis e Fernando Pessoa na Lisboa da época, evidenciando a sua imaginação fértil», destaca. Outro dos livros referidos é “Memorial do Convento”, por ser leccionado no ensino secundário. «Nas obras de Saramago encontramos um estilo muito próprio e original», analisa António José Dias de Almeida., para quem o escritor «conseguiu transpor para a escrita a fluência do pensamento e da imaginação». Quanto ao lado mais controverso de Saramago, considera que «era muitas vezes provocador, mas no sentido de querer alertar para causas, para fomentar o debate».

Já Ana Fonseca, docente no Instituto Politécnico da Guarda (IPG), prefere falar antes no «grande legado» que ficou. Das 36 obras, destaca três: “Memorial do Convento”, “O ano da morte de Ricardo Reis” e “Ensaio sobre a Cegueira”. «Não sendo a sua morte propriamente uma surpresa, é uma enorme perda para a cultura e para a literatura portuguesa», considera Ana Fonseca, ao falar num «percurso notável». A opinião da docente do IPG é idêntica à de António José Dias de Almeida: «É um dos maiores escritores da língua portuguesa de todos os tempos». De resto, a sua morte coincide com o fim do estudo de “Ensaio sobre a Cegueira” na disciplina de Literatura e Cultura Portuguesa, que Ana Fonseca lecciona: «Os alunos, de 18 e 19 anos, mostraram-se próximos da obra, que aborda a falta de esperança e a possibilidade de acreditar no ser humano, e perceberam a sua dimensão alegórica», congratula-se.

«Estamos a falar de um escritor notável, que nos fez o favor de ser o primeiro Nobel português», diz, por seu turno, Gabriel Magalhães, que no ano passado recebeu o Prémio Revelação pela Associação Portuguesa de Escritores. O seu livro preferido é “Levantado do Chão”, por ser «extraordinário» e descrever bem o autor: «Um homem que se levantou do chão, da sua condição e do ser português, o que nem sempre é fácil», garante. No entanto, o professor do Departamento de Letras da Universidade da Beira Interior (UBI) diz que ainda não chegou a hora de comparar Saramago a nomes como Camões ou Pessoa, pois «é algo que só pode ser feito pelos séculos vindouros». No que toca à relação do escritor com a figura divina, Gabriel Magalhães acredita que «não foi um ateu convicto, o que, com os anos, vai acabar por ser descoberto. No fundo, esteve sempre a falar com Ele, foi um crente sem crença», refere, aludindo a obras como “O Evangelho segundo Jesus Cristo» ou “Memorial do Convento”.

Rota de “A viagem do elefante” a caminho

Saramago morreu na última sexta-feira, no dia em que fez exactamente um ano que esteve em Castelo Rodrigo, a propósito da rota que imaginou para Salomão em “A viagem do elefante”. Na altura, o romancista lançou o desafio: o de juntar as Aldeias Históricas do interior num itinerário. Agora, «estão a ser dados os passos para criar esse percurso cultural», adianta o presidente da Câmara de Figueira de Castelo Rodrigo. Segundo António Edmundo, este é um projecto que junta a Fundação José Saramago e a Câmara a que preside, sendo que «há já contactos com outros autarcas» para que o itinerário seja uma realidade. A ideia é que a rota abranja todos os locais do percurso de Salomão. António Edmundo diz ter reunido já este ano com Pilar del Rio, a viúva de Saramago, e que está a ser preparada uma candidatura ao Programa Operacional do Centro, que tem em vista aspectos como a promoção do itinerário ou a sinalética. O edil espera que a rota esteja a funcionar dentro de um ano.

Saramago morreu no dia em que fez um ano que esteve em Castelo Rodrigo

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