Andava pela cidade como o traço rápido que atravessa a folha de papel. Quando o tempo amolecia, ela surgia a lembrar-nos que a vida continua para além da nossa fadiga. Eu olhava espantado a velocidade do seu andar, a rapidez do seu gesto, a pontaria do seu olhar: a necessidade abate, mas também torna as pessoas incansáveis. Ninguém sabia bem como ganhava a vida. Dizia-se que fazia recados e limpezas. Talvez também vendesse coisas insignificantes para quem as não comprasse. Vestia de preto e o seu tímido rosto fechado ia bem com a escuridão do pano. Os vestidos eram-lhe dados e nunca coincidiam com ela: ficavam-lhe compridos ou curtos, apertados ou largos. As faces pálidas estavam vincadas pela vida e pelos seus riscos. Teria um pouco mais da idade a que, porventura com excessiva credulidade, chamamos meia. Eu vi-a passar no Chiado, para baixo e para cima, ou a atravessar a Baixa, para trás e para a frente. Frenética, todos os dias surgia a correr numa rua, a dobrar uma esquina, a atravessar uma passadeira, a mudar de passeio, a entrar numa porta. Era pequena, repentina, eléctrica, meteórica. Um dia, observei os seus pés a desenharem uma diagonal célere e envergonhada no Largo Camões e a desaparecerem no interior de um prédio próximo e gasto, quase arruinado. Percebi que morava ali.
Era ao fim da tarde, quando o sol caía como uma pedra de fogo, que ela saía de casa para realizar o seu último trajecto de um dia cheio deles. Mas já era outra! A humildade dava lugar ao orgulho e a discrição à exibição. Mostrava-se inverosímil e magnífica: maquilhada, usava um vestido de seda clara ou de veludo forte e, sobre os ombros, tinha uma écharpe ou uma pele. Com sapatos de verniz, às vezes punha um chapéu com uma pena. Quando, pela primeira vez, assim a vi, suspeitei que à virtude apressada do dia sucedesse o vício vagaroso da noite. Mas não: a mulher não saía de casa para vender o corpo, mas para oferecer o espírito. O caminho que fazia era largo, limpo e linear. Ela desfilava, segura, ritmada e decidida, numa passerelle imaginária que atravessava a largueza dos Restauradores e subia a amplidão da Avenida da Liberdade, até ao grande monumento que, em frente do que outrora foi o Parque Mayer, se ergue para lembrar aos homens desatentos a I Grande Guerra e os seus mortos. Chegada aí, a mulher parava, contemplava a glória esculpida, dava meia volta lenta e fazia o olhar descer à terra, na qual os seus pés avançavam até à base do memorial. Erguia então a cabeça e o braço, olhava quem passava e, à sombra da pesada eternidade da pedra onde se lê a inscrição “Ao Serviço da Pátria O Esforço da Grei”, dirigia o seu discurso à cidade e ao mundo. Naquela retórica, reconhecia-se uma beleza transtornada e sagaz: eu sabia que, naquele momento, Beckett passava sempre por Lisboa.
Durante horas, ela falava do bem e do mal, do triunfo e da derrota, da vida e da morte. Havia no que dizia o sopro épico e o murmúrio lírico, o ardor sagrado e o arrojo profano, o louvor que exalta e o escárnio que abate. Com uma memória infalível, misturava sentenças de livros, diálogos de filmes, réplicas de peças, discursos de políticos, frases da história, provérbios populares, fórmulas judiciais, necrologias de jornais, ditos televisivos, slogans publicitários, prescrições médicas, orações da missa. Cruzava o seu vigoroso português de lei com palavras incertas de outras línguas. Numa tarde em que a luz recusava despedir-se, encontrei na sua voz solene os ecos das vozes de Cícero, de Vieira, de Napoleão, de Churchill, de Kennedy, de Luther King, de Mário Soares, de Natália Correia, do Manuel Luís Goucha e do Ricardo Araújo Pereira. Neste tempo em que tudo se afunda na vulgaridade e na amnésia, o seu verbo velava e mantinha a audácia sonora que dá à vida asas para voar sobre a morte. Há meses que a não vejo. A sua ausência é mais um soturno sinal de que a pequenez dos tempos actuais não suporta a grandeza que a acusa!
Por: José Manuel dos Santos