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A travessia dos beduínos

Bandarra-Bandurra

Os beduínos são nómadas que, frequentemente, fazem a travessia do deserto em busca daquilo que consiste no seu governo de vida. Vagueiam pela imensidão de areia e rochas na companhia de cáfilas de camelos, estes “remoendo cardos, de beiços descaídos e baba pendente, bamboleando as suas corcovas ao ritmo das suas melopeias”.

Os novos beduínos estão fora do deserto, o que não significa que deixem de fazer, embora metaforicamente, a sua travessia.

Quando chega o tempo da distribuição dos cargos de governador civil e outros equivalentes, cujas benesses se concretizam através dos nomes das listas de espera partidárias, por vezes se lembram esses pacientes que aguardam a sua recompensa. Na dita lista passam a estar incluídos alguns dos beduínos da cor predominante que fizeram uma travessia do deserto, camelos não incluídos, julgo eu. Ficam adormecidos no respectivo partido, mas fazem o mais e o menos para não permanecerem esquecidos. Assim sendo, penosa, paciente e pacificamente (PPP) fazem a travessia do deserto entre o oásis da primeira distinção e cargo e o oásis do segundo, embora este, menos vistoso, constitua, através do respectivo aduar, uma espécie de louvor palpável.

Há aqueles que nem sequer chegam a encetar os primeiros passos da travessia; ou melhor, aqueles que iniciam a travessia em aduar dourado ou em oásis onde haja mais do que tâmaras e água. Há ainda aqueloutros que, de tanto sairem perdedores, acabam por receber a menção honrosa pela incontinência da derrota. A todos se mitiga a sede, se envolve na amplitude generosa de uma nomeação “honoris causa” política.

São disso exemplo os que, perdedores na luta eleitoral, são aconchegados na plataforma dos abençoados com o que há de mais disponível: o Governo Civil. Passou-se recentemente em Aveiro, onde o socialista José Mota, derrotado para o Município de Espinho, abicha sem espinhos como Governador Civil da área; ainda o de Isabel Santos, que saiu perdedora no “combate” com o jurássico Valentim Loureiro, mas recebeu o distrito do Porto; ou ainda a da perdedora em Alpiarça, Sónia Sanfona, cuja música se vai fazer ouvir no Governo Civil de Santarém.

Atrevo-me a dizer que, caso o PSD tivesse vencido as legislativas e as autárquicas tivessem o resultado que tiveram, hoje seria Governador Civil da Guarda João Mourato.

Das autarquias para os governos civis, o passo contempla sempre quem está com quem. No caso do nosso distrito, estava a chegar ao fim a travessia de António Santinho Pacheco, cuja carreira política, para além de deputado da AR, passou pela Câmara Municipal de Gouveia, à qual presidiu até ser derrotado em eleições. Neste particular, e tratando-se da pessoa de Santinho Pacheco, tenho que louvar a escolha do PS. O ex-autarca merecia-o e é natural que, no cinzento a que chegou a importância do cargo, ele o faça com qualidade e cartilagem vigorosa, mormente na minguada representação do poder central (apenas através da tutela da Administração Interna), nas visitas e inaugurações, na emissão de passaportes, segurança pública, protecção civil, infracções graves de trânsito e gestão de processos eleitorais. Ninharias, se comparadas às prerrogativas do cargo no séc. XIX.

Se tivermos em conta que já tomaram posse no Governo Civil, depois do 25 de Abril, tantos governadores como os que tinham assinado o respectivo termo durante o Estado Novo (14), e na perspectiva de que o artigo 291º da Constituição, a permitir referendar a regionalização, poderá determinar o “requiescat in pace” do lugar; se acrescermos a perspectiva da grande vaga que surgirá de autarcas em limite de mandato em 2013, estaremos com muitos beduínos políticos numa árida e febril travessia. Não haverá camelos tantos para tamanha condução. Nestes pressupostos, muitos desistirão e passarão a gozar a reforma, enquanto outros, no anseio do posicionamento mais eficaz para atingir o oásis, se transformarão em tuaregues de clavina romba ou em coronéis, de capa até à boca, a abrir caminho a golpes de pingalim. Aqui aplicar-se-á adequadamente a parábola: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um ex-autarca entrar no Governo Civil”.

No sobe e desce para o poder dos dois partidos mais bem posicionados na grelha, o mais provável é vermos nos oásis distritais (ou, porventura, regionais), o rodopio das respectivas cores partidárias: em vez do traje branco e azul do deserto, teremos em alternância o rosa e o laranja. Nalguns casos – convém augurar pela forma como a caravana passa – assistiremos ao negrejado mistério das cores rosa que, ao poder do desbotar das canículas da travessia e da má gestão do grão-vizir, se transformarão em laranja. Então, poderão surgir os embuçados e outras habilidades de galfarros que, por pudor, não pretendo aprofundar.

Por: Santos Costa

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