Arquivo

A soberania e os seus descontentamentos

O subtítulo tem dois significados. O primeiro, é simples: escrevo este texto no dia 24 de Setembro e a denominada eleição legislativa, é no domingo a seguir, 27. Mas, o meu texto deve estar no jornal esta quinta, dia 25. Não sou bruxo, tenho palpites. Esse palpite diz-me que deve ganhar quem melhor se entenda com a crise financeira que se vive na Europa, essa praga de Portugal. Como no Chile. Em breve, começa a corrida para a Presidência da República. Quando havia ditadura, todos os partidos democratas juntaram forças para derrubarem um ditador que faleceu réu de crimes de sangue, mas faleceu réu. Nas mãos da justiça. Com a democracia restabelecida, os partidos deram aos seus candidatos poderes muito pessoais e a Concertação Social começa a desaparecer, após ter eleito quatro excelentes Presidentes da República. Será que esta arrogância precipitada vai abrir as portas a quem sempre ficou em segundo nas presidenciais e que une a todo o fascismo que governou o país durante 20 anos? Precipitações pouco esclarecidas. E a diferença entre facções é imensa. A concertação, une; o fascismo desune e mata.

Em Portugal, em carta enviada por mim ao actual Primeiro Ministro, admoesto denuncio e na parte final do texto digo que o PSD e o PS não me parecem andar de mãos dadas, mas sim muito juntas, que até o calor de uma passa para a outra. Custa-me acreditar a mim, socialista científico e social-democrata, que os sorrisos prévios e essas humildades rapidamente aparecidas e o medo da dama de ferro por parte de um PM que, em público, reconhece faltas que nunca cometera ou assim parece. Tenho acesso directo à democracia portuguesa, tenho a honra do Governo me ter feito português após 31 anos de prestação de serviços ao país, trocando a minha Universidade de Cambridge por um ISCTE que, hoje em dia, todos vemos como cresceu e se unificou, excepto no espírito comunitário que faleceu lentamente por casa devido à morte não anunciada: o neo-liberalismo.

Voo cego que tem apenas uma saída: a soberania e os seus descontentamentos. Palavra que faz tremer aos que nos pretendem governar. Um Governar é saber gerir as contas do Estado, velar pela serenidade da nação e estar sempre atento a que ninguém, mas mesmo ninguém, esteja falho de trabalho. Infelizmente, quem nos governa é um grupo da, por mim denominada, cultura doutoral: advogados, médicos, sociólogos, e outras ervas, como a mais pesada, a tecnologia. Comunicam com o povo quando é conveniente, sem tempo nem hora. Nunca esqueço esse singular mandatário que inaugurou no país o sistema de presidência aberta e comunicava com o povo todas as semanas, sempre em sítios diferentes. Legou aos seus sucessores uma carga pesada, excepto ao mandatário anterior a este. Ele ia de camisa, à Perón de Argentina e sua populista mulher Eva, à Allende e Bachellet do Chile de hoje.

Há apenas um caminho. A soberania e o seu descontentamento. A soberania nasceu pela mão de Thomas Jefferson e do Abade Sieyés, no século XVIII da nossa era, época em que as nações revolucionadas se governavam por comunas, como a de Paris de 1875 e antes, a dos iguais de Babeuf, em 1775. Nada disto permitiu à burguesia que derrubou a aristocracia e aos ricos do mundo, para se apropriarem dos seus bens. A época das revoluções, essa mudança de poder de uma classe por outra, após a Revolução Francesa e a liberal de Mouzinho da Silveira, que Miriam Halpern Pereira explica tão bem mas não é ouvida: o seu saber passa a ser homenagens, louvores, mas nada do que diz entra na Constituição da República Portuguesa, como ela pretende.

O que diz essa Constituição, a actual digo, porque as primeiras eram social-democratas e as de hoje cada vez menos: No artigo 1º da Reformada em 2005: «Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária». E no 3º, nºs 1 e 2: «Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária». Ou esse famoso nº 2, que hoje diz: «A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa», tendo sido retirada a este artigo a frase: «democrática, que tem por objectivo assegurar a transição para o socialismo mediante a criação de condições para o exercício democrático do poder pelas classes trabalhadores».

Com a soberania ganha para o povo, é estritamente gerida pelos doutores da Assembleia ou da Presidência. Não sou adivinho, ganhe um ou outro, como português, advirto do perigo do descontentamento que os planos neo-liberais causam. E ao Chile, esse meu outro país já quase inventado: atenção, o lobo existe, como os capuchinhos vermelhos.

Lembro-me ainda da Constituição pré-ditadura no Chile, que, logo, no começo, definia que a soberania residia na nação e era delegada nas autoridades que a Constituição estabelecia. Não havia mudança possível sem plebiscito prévio, ontem como hoje. Em Portugal, a consulta ao povo é feita aos partidos que os representam e que são….doutores, excepto os poucos que não me corresponde definir e que serão os meus candidatos.

Português por graça do Estado

Por: Raúl Iturra

Catedrático do ISCTE-IUL – escritor

Sobre o autor

Leave a Reply