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A política, o poder e o território

Dois autores de renome, Ulrich Beck e Zygmunt Bauman, em dois ensaios publicados há alguns anos na revista italiana «Reset» falam da desterritorialização da política e da democracia, ou seja, no fim do paradigma originário («este apriori territorial», come lhe chama Beck) que há duzentos anos configurava a política ocidental. O primeiro identifica esta tendência com a emergência da «sociedade pós-nacional». O segundo, com a ruptura no diálogo entre «ecclesia» (público) e «oikos» (privado) que se processava na «agora», na praça pública. E, citando Manuel Castells, Bauman distingue entre poder, que flui, e instituições política que se estruturaram ao longo dos últimos duzentos anos e que permanecem o que sempre foram: um conjunto fixo e coeso. Ou seja, o poder separa-se cada vez mais da política. E mais ainda: esse espaço público da agorá, onde se processava a «tradução» entre o público e o privado, agora só é visitado por indivíduos solitários para confirmarem a própria solidão. Ou seja, o privado e mesmo o íntimo ocupou definitivamente o espaço público.

Interessantes estas considerações, porque vão ao núcleo do problema político moderno. A verdade é que esta tendência para a desterritorialização da política corresponde à superação definitiva da presença da instância comunitária mesmo nas sociedades contemporâneas, acabando por se verificar uma autêntica descomunitarização da política e da própria comunicação tradicional de base territorial. Não é muito difícil de compreender isto se pensarmos no modo como se processa hoje dominantemente a comunicação horizontal, instância indissociável da lógica democrática. Ela processa-se fora do contexto territorial: em rede ou por comunicação móvel. Prescinde de um contexto físico. A própria natureza do espaço público também já se desterritorializou e descomunitarizou, sofrendo uma ocupação temática dominantemente privada ou mesmo íntima. E é verdade que a «ecclesia», com este processo, tem vindo a sofrer uma retracção fatal para o poder político, na medida em que o impolítico favorece tendencialmente o poder que flui, que toca e foge. Com um poder desta natureza, as instituições políticas, que se mantêm obrigatoriamente fixas num território, amarradas aos seus próprios compromissos, mas desvitalizadas pelo domínio do impolítico na própria «agorá», tornam-se cada vez mais frágeis e precárias.

Não é assim tão difícil de verificar no terreno da política nacional esta emergência do privado com forma de poder informal ao ataque do poder electivo. Basta olhar para as «guerras de movimento» das várias corporações quando são atingidas pelo interesse geral. É claro que numa política territorializada não seriam possíveis estas «guerras de movimento» a que vimos assistindo. Mas, num novo espaço público com as características que ele tem, os «blitzes» ofensivos são fáceis, baratos e, às vezes, dão milhões. Porque a política territorial não escavou trincheiras e já se esqueceu da autêntica «guerra» que vale ser combatida em democracia: a «guerra de posição», aquela que exige uma longa preparação e uma complexa logística. Quem leu Gramsci entende perfeitamente ao que me refiro. Quem não leu, compreende certamente que me estou a referir à batalha pela hegemonia, pelo domínio ético-político e cultural. Batalha que começa a fazer cada vez mais sentido, vistos os desastres que a economia mundial está a conhecer, fruto da financiarização integral da economia mundial e da instabilidade permanente de sociedades que estão cada vez mais sujeitas a poderes que não controlam, a um mercado cada vez mais volátil e a uma permanente e incontrolável ondulação de opiniões públicas também sujeitas a opções e manipulações editoriais verdadeiramente inacreditáveis. Tudo isto ocorrendo sob aquele pano de fundo de que o poder, o verdadeiro poder quanto mais flui mais forte ele é. Se, depois, a isto juntarmos a tendência suicida dos vários agentes políticos institucionais que agem a pensar exclusivamente na táctica e na guerrilha política, então o quadro negro adensa-se e provoca nova ansidedade democrática.

Por: João de Almeida Santos

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