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A outra guerra da Crimeia

Theatrum Mundi

Há uma guerra da Crimeia que se trava todos os dias nas redes sociais. Desde há semanas, é quase furiosa a troca de argumentos entre ucranianos pró e anti-Rússia, como é quase furiosa a troca de argumentos entre os que, a propósito da Crimeia, se lançam em renovados debates sobre a natureza do mundo em que vivemos. Em poucos dias, recuperámos o imaginário perdido (e a retórica) de um mundo bipolar e esquizofrénico, de múltiplas divisões que atravessam não só a geografia do continente eurasiático mas, sobretudo, a geografia das opções éticas e estéticas, ontológicas e epistemológicas, que definem e distinguem as visões do mundo pessoais e coletivas.

Aconteceu há dias, num debate que travei no facebook com um meu interlocutor, a propósito de um texto publicado por este no “The American Conservative”. No artigo intitulado “A Rússia, O Ocidente e a ‘Equivalência Moral’”, o meu interlocutor criticava o universalismo colonizador da perspetiva que apelida de «excecionalismo ocidental»: «Quem quer que não cumpra os altos padrões do estado de direito, igualdade de género, liberdade política e liberdade de expressão estabelecidos pelo Ocidente é considerado inferior em termos de autoridade moral e desenvolvimento civilizacional». Numa argumentação que recupera tradicionais teses comunitaristas, o meu interlocutor defendia a existência de uma clara cisão entre a perceção do Ocidente e as perceções globais (ou seja, não-ocidentais) sobre o que está hoje em jogo na Ucrânia. A razão para tal bipolaridade estaria nas diferentes interpretações da história que alegadamente fundam tais perceções: «Para o Ocidente, a história é linear e consiste na evolução inexorável que conduz, de uma passado primitivo e violento, aos sofisticados padrões atuais. (…) Para o resto do mundo, a história é cíclica e apesar de grave, a violação de normas internacionais não é uma calamidade. (…) É a realidade que muda as normas, não o contrário».

Neste contexto, a trajetória da Rússia pós-Soviética é interpretada em termos da submissão a padrões civilizacionais estrangeiros e estranhos à Rússia e a tomada de posição de Vladimir Putin na Crimeia uma ato (justificado) de revolta contra a profunda discriminação e o autismo cultural do Ocidente: «Os russos sentem que se adaptaram a todas as exigências do Ocidente com o objetivo de serem aceites em termos civilizacionais. Estabeleceram a democracia, abriram os mercados e ainda tentaram jogar a cartada das eleições ucranianas da melhor forma possível, apoiando o candidato que defendia os seus interesses». À parte o facto de que é contestável que a Rússia se tenha democratizado e aberto o seu mercado (desde a chegada de Putin ao poder em 2000 a tendência foi claramente inversa), ou que esteja a jogar algum tipo de jogo de conformidade civilizacional, a minha questão com o autor do artigo diz respeito à sua defesa da equivalência moral. Como sobressai do das suas palavras, essa equivalência contextualiza as ações dos diferentes atores, é certo, mas termina por justificá-las em nome do mesmo princípio da exceção que o autor aponta ao Ocidente.

O meu problema com a equivalência moral é que ela serve, na verdade, para camuflar e promover os critérios do poder estabelecido em vez de refletir alguma forma de excecionalismo cultural. A minha posição parte da convicção de que é possível definir pontos arquimedianos de referência transcultural mas a troca de comentários ao artigo representou, genuinamente, a tentativa de os perscrutar criticamente (ironicamente à maneira rortiana) e reconhecer que o universalismo também serve frequentes vezes para camuflar e promover o poder estabelecido. Assim, o mínimo de universalismo que apontei na troca de comentários limitou-se a destacar que, para lá de qualquer excecionalismo comunitarista, todos os seres humanos partilham o interesse na liberdade face ao medo, face à necessidade e face às arbitrariedades do poder, e que estes interesses se manifestam em normas que podem e devem mudar a realidade.

Por: Marcos Farias Ferreira

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