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A nova oposição

Razão e Região

Ficaram célebres as palavras do Presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses, Fernando Ruas, acerca do tratamento autárquico que deveria ser dado aos funcionários do Ministério do Ambiente: corrê-los à pedrada! Mais recentemente também se ouviram palavras radicais acerca de cortes em actividades essenciais da vida municipal se a nova Lei das Finanças Locais vier a ser aprovada. Quem é que já se esqueceu das bandeiras a meia-haste, prometidas no Encontro Nacional de Eleitos Locais, em Santarém, em Novembro de 2005, a propósito do Orçamento de Estado para 2006? São, de resto, recorrentes posições drásticas da ANMP sobre as mais variadas decisões do poder central, instando – através de circulares – os autarcas à contestação.

Devo dizer que considero politicamente muito interessantes todas as formas de organização nacional dos eleitos do poder local. De resto, também sou um deles. A dialéctica política, com boa organização, enriquece-se e a democracia ganha com isso. Mas, infelizmente, a ANMP actual, com os mesmos protagonistas de sempre e com um entendimento distorcido da democracia representativa, tem vindo a contribuir activamente para o seu próprio definhamento. Protagonistas antigos, editores de um bloco central em versão autárquica e portadores de uma visão sindical-corporativa pouco compatível com a lógica da democracia representativa, estes responsáveis de sempre estão a ir longe de mais.

A questão reside na confusão que se tem vindo a instalar acerca das funções que, no sistema democrático formal, desempenham três poderes institucionais fundamentais: Assembleia da República, Governo e Poder Local. Trata-se, em todos os casos, de instituições do Estado, cabendo a cada uma funções e competências institucionais no interior do sistema formal. Neste sistema, a dialéctica política está, no plano institucional, confinada à Assembleia da República, do mesmo modo que, no plano da sociedade civil, ela se processa através dos partidos, movimentos ou conjuntos aleatórios de cidadãos. Ora é nesta distribuição de funções e de papéis que reside a grande confusão da ANMP. Quando se trata de instituições que não sejam a Assembleia da República (ou, por extensão e analogia, as Assembleias Municipais, que não possuem, todavia, capacidade de iniciativa legislativa) a dialéctica política é de tipo funcional: desenrola-se de acordo com funções, competências e mecanismos previstos formalmente pela lei. Não pode, por isso, desenrolar-se com os mesmos ingredientes da dinâmica política geral, se não quiser subverter o próprio sistema representativo. Muitas confusões deste tipo tem havido em Portugal: por exemplo, foi recentemente muito polémica a reivindicação, por parte de alguns representantes do poder judicial, da capacidade de «codecisão» legislativa nas normas que lhes dizem directamente respeito. Exactamente como está a fazer, de novo, neste momento, a ANMP, a propósito da Lei das Finanças Locais, numa tremenda confusão de géneros (diriam os pós-modernos) ou, melhor, de funções e de competências. E com evidente prejuízo do sistema político.

Ora o que não entendem os arautos deste neocorporativismo é que ainda vivemos numa democracia representativa, onde a defesa do interesse geral é garantida através do mecanismo da representação política nacional e não por progressiva justaposição de poderes parcelares, ainda que de natureza electiva. O sistema distribui funções de tipo institucional e é exercendo-as que as instituições dão o seu contributo para a dialéctica democrática. A inversão deste mecanismo equivale à subversão do próprio sistema democrático.

É certo que estamos a viver tempos de mudança nos sistema democráticos representativos, chegando as mudanças a afectar directamente determinados mecanismos centrais da democracia representativa. Por exemplo, a nova natureza do espaço público tem vindo a provocar uma forte erosão da legitimidade de mandato dos representantes e dos governos e a instalar um novo tipo de legitimidade, a que chamo legitimidade flutuante. Muito bem. Mas o que não pode ser quebrado, sob pena de ruptura, é o centro nevrálgico do sistema, ou seja, o próprio sentido da representação, a representação do interesse geral, introduzindo subrepticiamente o mecanismo da «codecisão», não previsto constitucionalmente e contrário ao próprio espírito da democracia representativa. A «codecisão», partilhada com os próprios interessados, acabaria por negar a própria natureza do sistema representativo, por corromper a ideia de interesse geral e por introduzir, pura e simplesmente, um novo tipo de «democracia consociativa». Ora acontece que ainda lá não chegámos. E bem, a meu ver.

Por: João de Almeida Santos

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