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A minha visão da democracia local

Razão e Região

O princípio da autonomia local foi reconhecido pelo Conselho da Europa e pelos países signatários da Carta Europeia da Autonomia Local há vinte anos. Esta carta recomendava a constitucionalização do princípio da autonomia. Mas a Carta já constitui por si só uma espécie de constituição europeia que define os grandes princípios constitutivos do poder local. De algum modo, a Carta aponta no sentido da aplicação do princípio da subsidiariedade nas relações entre o poder central e o poder local, reconhecendo uma ampla autonomia no uso dos recursos que lhe são afectados.

A Carta constitui um passo decisivo na afirmação da autonomia política do poder local. Um passo que levou vários decénios a dar, mas que se revelou fundamental para a consolidação da democracia local.

A verdade é que a democracia local se constitui como uma autêntica incubadora da democracia representativa ao mesmo tempo que representa o seu complemento necessário ou mesmo o seu próprio corpo orgânico.

São já muitos os que falam de definhamento da democracia representativa quer por excesso de formalismo quer por crescente anemia do poder político de origem electiva. As democracias representativas têm vindo, de facto, a perder consistência do ponto de vista do poder político, uma vez que ele tem vindo a ser confiscado quer por outros poderes emergentes (por exemplo, o poder mediático) quer pela mundialização dos centros de poder económico. À velha crítica da democracia representativa como poder excessivamente formal e abstracto, que era feita pela direita e pela esquerda, veio agora juntar-se uma crítica mais consistente que reconhece que o poder político de origem electiva tem vindo a esvaziar-se, tornando-se cada vez mais anémico perante novos e velhos poderes fácticos que já ocupam o espaço deixado vazio pelo poder democrático. É como se esta anemia progressiva do poder político de origem electiva estivesse cedendo o lugar a um poderoso neocorporativismo, capaz de determinar cada vez mais o destino do próprio poder político de origem electiva. Não é por acaso que são já tantos os que falam de democracia pós-representativa, de democracia do público, de democracia de opinião ou mesmo de democracia televisiva. Todos estes conceitos aludem a uma crise da democracia representativa tradicional e não nos moldes da velha crítica da «crise da representação» e da partidocracia. Estes conceitos aludem a um real definhamento da representação política tradicional e a uma transformação radical da própria forma de representação, mais próxima daquela sociedade do espectáculo de que falava Guy Debord do que da clássica representação jurídica.

Ora bem. Se esta é a situação e se não se conhece melhor regime do que o democrático representativo – sabendo nós como acabaram as velhas democracias directas -, então o nosso olhar só se pode virar para aquele que é verdadeiramente o corpo orgânico da democracia representativa – o poder local. Sem este corpo orgânico, a democracia representativa já teria deixado de ter algum significado. Na verdade, se quiséssemos traduzir o sistema democrático através do binómio forma-substância, a forma seria representada pelo poder central e a substância pelo poder local. Falo, naturalmente, no plano político.

A verdade é que o poder local está mais próximo dos cidadãos, é permanentemente instado a responder a problemas concretos e a expectativas, os rostos dos poderes locais são rostos físicos, não ficções televisivas, a dimensão ética dos agentes do poder local é mais directamente verificável. Este poder tem uma dimensão verdadeiramente orgânica. Se o poder central possui uma dimensão de natureza mais societária, para usar a distinção de Max Weber, o poder local possui uma dimensão mais comunitária. É como se aquele excesso de formalismo que os críticos reconheciam na democracia representativa tivesse no poder local o seu contraponto, a substância que lhe daria corpo. Precisamente o seu corpo orgânico, devido às características acima apontadas: proximidade, concretude, fisicidade, eticidade, comunidade.

Estas características acrescentam valor, riqueza, à democracia representativa. Mas trazem também o seu reverso: aqueles problemas que se revelam com grande crueza no exercício do poder local. Cito, a título de mero exemplo, algumas formas distorcidas de exercício pessoal do poder, fruto precisamente da proximidade. E, todavia, o sistema de poder autárquico é, em si, vital para a sustentabilidade da democracia representativa. Não se trata, evidentemente, de um subsistema de tipo orgânico, uma vez que os mandatos não são revogáveis, mas a sua consistência territorial, a sua extensão e a sua organicidade fazem dele uma peça indispensável para a sustentabilidade do sistema democrático.

Por: João de Almeida Santos

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