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A minha reacção

Na frontalidade das suas perguntas, os desafios do leitor João R. Costa, de Chokwe (Moçambique), só para o Transcendente podem remeter.

Não apenas me irmano no seu repto e reajo à sua interpelação. Se desta invectiva – singela só na aparência – resultar a adesão de um grupo a crescer e resultados tangíveis houver, desde já, para ele, honras.

Primeiro: o que descreve é o escuro da realidade colonial. Isto quer dizer, desde logo, que já houve um paradigma tenebroso antes; depois, que os que tanta falaram de libertação são o espelho – a extensão – mais obscena do que criticavam.

A uns e outros, colonizadores e colonizados, faltou/falta a dignidade da justa medida.

Era possível almejá-la.

A superficialidade do ser humano é simplesmente aterradora e… quem ainda se lembra da criminosa Inglaterra, desde a Nigéria com o Biafra, às colónias (tornadas EEUU) com o genocídio índio, ao “protagonismo” de Cecil Rhodes e ao institucionalizado racismo na África do Sul? E etc., etc.,etc.

E por que não falar do actual (neo-?!…) colonialismo francês? Ou do imperialismo germânico da Conferência de Berlim e suas sequelas? Ou dos holandeses que vendiam armas aos próprios inimigos? Ou da conquista da Abissínia – já no século XX – por Mussolini? Ou…

A interpelação de Costa põe – clamorosamente – em xeque os autores da descolonização portuguesa. É consabido. Não nos detemos nisso.

Mais. Se fosse a raça que distinguisse entre bons e maus, por que é que Colin Powell, no próprio Pentágono, em XII-89, dá ordens de invasão do Panamá e, há algum tempo, mente na própria ONU quando à invasão americana do Iraque?

E por que é que outra descendente de antigos escravos, Condoleezza Rice, não só não se inibiu de integrar um governo tão inominavelmente miserando como o de Bush, como prestar-se a mentiras, ridículo e desprestígio?

Isto para não lembrar já que eram – antes e depois da chegada dos europeus – africanos quem escravizava africanos, ou o modo como, hoje, são tratados, por outros negros, os pigmeus.

Contudo, se, por absurda hipótese, podemos passar um atestado de estúpido a quem quer que seja – excepto a nós próprios – temos que declarar o seguinte.

Quem fez estradas, caminhos-de-ferro, portos, aeroportos, centros urbanos e, antes de tudo isso, arroteou terras e se dispôs a enfrentar dificuldades e penas que, aos olhos de um europeu como eu – e todos – são, simplesmente, heróicas?

Sei do que falo.

Como ex-alferes miliciano em Angola, entre IX-63 e XI-65, pude viver a realidade da labuta porfiada e às vezes hercúlea dos nossos compatriotas, tal qual o requinte de um certo viver branco em Luanda, onde jantar no Hotel Continental com uma orquestra europeia de topo ao lado e, a seguir, dançar, estava na prática de muitos? Pude viver, em suma, inserido numa sociedade intrinsecamente defeituosa, mas que… funcionava.

E haverá sociedade que não seja intrinsecamente defeituosa?

Essa “maravilhosa ilusão” que é a hodierna França (a expressão é do inatacável Ulrich Wicker), ou o país da mais alta marginalidade na “EU”, a Suécia – para só citar dois exemplos – que são?

E sei do que falo, ainda, porque há pares e pares de anos, não sei o que são férias. Em Agosto, na minha VW “pão-de-forma”, ando pelos melhores museus e património histórico, artístico e cultural do Continente.

Cartesianamente, porém, voltemos às perguntas.

Uma das razões por que a Imprensa não pode fazer tudo, na denúncia de escândalos como os aduzidos por João R. Costa, é simples: nem os jornalistas são sábios – e muito menos santos -, nem eu estou certo que a Igreja-instituição faça pelos pobres o máximo que pode, nem, pelos vistos, é novidade o protagonismo do paradigma neo-liberal na própria dita Igreja (perdoe-me, aqui, a parcial tautologia).

Os problemas para que o muito estimado leitor moçambicano remete, exigem – desde logo – uma educação de avantajado saber e qualidade (onde está?) e, ainda antes, uma educação enformada pelo Amor, pelo Transcendente.

Só estes ingredientes podem conferir-nos a generosidade e a ciência prévias a toda a acção. É o único critério.

O inenarrável insulto à humanidade digna e – sobretudo – aos pobres, escancarado pela opulência de políticos africanos, não é passível de qualquer pacto.

Vamos estudar a fundo tal iniquidade, sim senhor.

A “vigilância do amor” (a expressão é de Victor Matos, que foi meu professor, em Coimbra, de Filosofia Antiga) bem pode erigir-se como critério. Depois, todavia, como fazer dele uma praxis?

Guarda 12-VIII-04

Nota do Autor.: Este texto é a resposta a uma interpelação de um leitor moçambicano da prestigiada revista missionária “Além-Mar”. Por motivos que ultrapassam o autor, este decidiu, com o benévolo acolhimento de “O Interior” – que muito agradece – publicá-la neste jornal egitaniense, incitado, a demais, por amigos. Mantém-se a data em que o escrito surgiu.

Por: J. A. Alves Ambrósio

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