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A maternidade, a frieza dos números e a passividade destas gentes

Coisas…

Joga-se forte neste tabuleiro de interesses que é o negócio dos hospitais.

Entre jogadas mais ou menos limpas (que é exactamente o mesmo que mais ou menos sujas), falta equacionar o problema em termos objectivos, usando os números mas também o bom senso.

O distrito da Guarda tem uma área de 5.518 Km2, 14 concelhos e 173.716 residentes (dados de 2001). Possui uma história e geografia próprias, uma identidade e personalidade que são suas e de mais ninguém; é uma terra alta e fria, acolhedora e altiva, pelo menos nas últimas centenas de anos. Possui os seus hospitais e os seus centros de saúde. Possui a sua maternidade que viu nascer nos últimos 3 anos cerca de 3000 crianças, efectuou quase 20.000 consultas, 1248 analgesias do parto por via epidural, mantendo uma mortalidade materna de 0 (ZERO) % e uma mortalidade fetal dentro das melhores médias internacionais. Maternidade essa onde trabalham 9 obstetras, 10 enfermeiras especialistas, 6 anestesistas, 4 pediatras já sem contar com auxiliares, administrativas, assistentes sociais, etc… Possui bloco operatório próprio e exclusivo e urgência aberta 24 horas por dia. É com isto que meia dúzia de burocratas e dúzia e meia de oportunistas pretendem acabar.

Batendo um pouco mais (por que há verdades que têm que ser ditas), passemos os olhos pelo local para onde se pretende transferir o fervilhar atrás descrito: a Covilhã. Cidade simpática, sede de concelho, com 555,6 Km2 (compare-se com os 5.518 do distrito da Guarda), hospital novo e às moscas com uma maternidade que efectuou pouco mais que 600 partos no último ano, obstetras a meio gás (1 de chamada e 1 em presença) por falta de meios, sem anestesista exclusivo e com uma prática de analgesia do parto incipiente. É sabido, aliás, que a fusão das três maternidades da região na Covilhã só seria viável com pelo menos o triplo dos médicos especialistas actualmente disponíveis. E é com esta base que se pretende dar assistência a mais de 380.000 pessoas espalhadas por dois distritos com uma área total de 12.000 Km2.

Coloca-se assim a questão fundamental: que vantagens para as grávidas e para os seus filhos traria a transferência da maternidade da Guarda para a Covilhã? Resposta: nenhuma. A ser assim, então porquê? A resposta é complexa e não única. Ora, aqui vai:

1º. A criação da Faculdade de Medicina na Covilhã foi um tremendo erro (causa primeira);

2º. Pretende-se legitimar o erro com erros tão ou mais grosseiros como o 1º, “inventando” doentes, serviços e necessidades onde não existem (causa prática);

3º. “Em terra de cegos quem tem um olho é rei” e este tipo de fenómenos abre as portas a indivíduos em fim de carreira, fartos do litoral que aproveitam a oportunidade para reformas douradas e glórias tardias (causa acessória);

4º. A passividade de quem cá está, permite o abuso e a desconsideração de quem tem mais lata e menos escrúpulos (causa humana1);

5º. O colaboracionismo de quem, sendo de cá, apenas aspira a apostar no cavalo certo (causa humana2);

6º. O desprezo pelas pessoas e pelos seus reais problemas por parte de quem decide, quem manda, quem assina (causa perversa).

A intenção de encerrar a maternidade e transferir os seus serviços para a Covilhã é um golpe duro no hospital e na cidade. Mas sobretudo nas pessoas. E é sobre este ponto que temos obrigação de nos debruçar. Políticos e técnicos; gente com e sem filhos; gente da Guarda e gente que gosta da Guarda. Há que clarificar posições, saber por exemplo, por que motivo a directora do hospital diz que não fecha e o director clínico, José Cunha, afirma que nunca devia ter reaberto; saber por que diz ele isto e a líder do seu próprio partido o contrário; saber por que é que o coveiro é um dos “nossos”. Há que saber onde param os presidentes de câmara, de junta, os deputados quando na Covilhã se vão fazendo reuniões de charme para acabar com isto. Há que perguntar por que razão Castelo Branco grita em uníssono, boicotando o processo, escrevendo ao ministro, faltando às reuniões, fazendo as suas próprias sessões, enquanto nós por aqui nos limitamos a esperar, qual vitelo no matadouro ou judeu em Auschwitz.

Dra. Maria do Carmo. Dra. Ana Manso. Por uma vez na vida dispam as camisolas da cor, vistam as da terra, chamem os presidentes de câmara, os da juntas de freguesia, o Sr. Bispo, o Governador Civil, os deputados municipais, as pessoas, os técnicos, os jornalistas, as televisões e as rádios e façam o maior banzé que esta terra jamais tenha visto.

Não queiram, por favor, ficar irremediavelmente ligadas ao fim da possibilidade, em mais de 800 anos, de se nascer na cidade da Guarda.

Por: António Matos Godinho

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