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A Mão Invisível

Adam Smith ensinava que uma mão invisível segurava os cordelinhos do mercado fazendo-o funcionar de um modo harmonioso. Se alguma coisa desequilibrasse essa harmonia, a tal mão rapidamente a corrigiria. Se por exemplo falisse uma grande fábrica numa cidade, deixando desempregados os seus trabalhadores, passaria a haver excesso de oferta de mão-de-obra, o que iria embaratecer o seu custo em respeito às leis da oferta e da procura: havendo muitos trabalhadores à procura de emprego e poucos empregos disponíveis, só conseguiriam trabalho os que fossem competitivos, pela qualidade ou, mais frequentemente, pelo preço. A partir do momento em que este baixasse suficientemente, justificaria a instalação nessa cidade de novas empresas, atraídas pela mão-de-obra barata, assim se conseguindo de novo o pleno emprego e nova subida de salários.

Galbraith mostrou que a coisa não era assim tão simples. O mercado tem barreiras, obstáculos. A intervenção estatal, por exemplo. Ou então, no nosso caso, a lei do salário mínimo. A competitividade laboral tem limites, e ainda bem. Ou então, a havê-la, que se faça pelo lado da qualidade. As empresas de fora já não se instalariam aqui pelos baixos salários, mas sim pela produtividade dos trabalhadores. Ou por outros factores, como por exemplo as boas infra-estruturas, as auto-estradas, os impostos competitivos, o poder de compra local, as fontes de matérias primas.

O problema da mão invisível de Adam Smith é que há inúmeras formas de a enganar, de fazer batota. A China, por exemplo, faz batota de muitas maneiras diferentes e não só pelos salários muito baixos. A moeda tem um valor artificialmente baixo (como o escudo dos anos 70 e 80), destinado a tornar mais competitivas as exportações. O crédito às empresas é facilitado em termos impensáveis na Europa ou nos EUA. A propriedade industrial, as patentes, protegidas entre nós, não têm ali qualquer valor. A Honda, por exemplo, desenvolveu um pequeno motociclo destinado ao mercado chinês, a um preço muito competitivo, abaixo de quinhentos dólares. Não tardou que uma empresa chinesa copiasse esse motociclo peça por peça, a um preço muito mais baixo. Tão baixo e em tão elevada produção que passado pouco tempo se vendia não à unidade, mas ao peso. Houve entretanto algo que salvou o investimento da Honda, e foi o peso e prestígio da marca. Passou a ser considerado de mau gosto andar numa motorizada “pirateada”; era muito melhor, quase uma garantia de status, pilotar orgulhosamente uma Honda, the real thing.

Tudo isto é fraca consolação. A Honda pode ter resolvido todos os seus problemas abrindo algumas fábricas na China, aliando a sua superior imagem de marca à possibilidade de produzir a preços cada vez mais competitivos. E isto, se bem repararam, faz-nos regressar ao início e ao triunfante regresso da mão invisível no mais improvável dos sítios, numa China formalmente comunista e que, na prática, pratica o mais selvagem e batoteiro capitalismo.

É claro que as verdadeiras protagonistas do momento são as grandes empresas multinacionais, ou se quiserem apátridas. Os seus interesses são sobretudo os lucros a declarar no final de cada período fiscal, com consequências em sede de dividendos, de capitalização bolsista e dos benefícios dos seus CEO (os gerentes, capazes de absorverem, com as suas elevadíssimas remunerações, até um terço dos lucros das empresas). Mas isso é outra história.

Sugestões

Um livro: O Poder e os Idealistas – A Geração Idealista de 68 e a sua Subida ao Poder (Paul Berman, Aletheia Editores 2007). Descobriram em 68 que debaixo das calçadas de Paris havia areia, o que inspirou uma das mais célebres frases da altura: “Sous les pavés, la plage”. Bravo. Et bravo aussi pour les “stock options”.

Uma efeméride: faz agora quarenta anos que três exércitos árabes foram destroçados pelos israelitas em apenas seis dias. O Egipto perdeu o Sinai, a Síria os Montes Golã e a Jordânia, para além do mais, o melhor de Jerusalém. Foi na sequência dessa guerra que a URSS passou a apoiar os países árabes contra Israel, seguida rapidamente pelo melhor da esquerda europeia, já esquecida dos seus passados amores pela experiência comunitária dos colonatos judaicos. O que nos leva ao actual conflito libanês: de que lado estão agora? Eu diria que do lado do silêncio.

Por: António Ferreira

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