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A lógica da subjectividade matrimonial

A anulação de um casamento pelo tribunal de Lille (França) porque a esposa tinha ocultado que não era virgem, desencadeou uma tempestade mediática sobre a liberdade sexual das mulheres e um animado debate no parlamento com a ministra da Justiça, Rachida Dati, a pedir recurso da sentença. Paradoxalmente o que se apresenta como próprio de uma mentalidade ultrapassada é difícil de atacar com a moderna lógica da subjectividade.

O casal em questão é muçulmano: um engenheiro francês e uma estudante universitária de origem magrebina. A sentença nada diz sobre a religião e aponta como motivo da anulação um vício de consentimento. O facto da mulher estar de acordo com a anulação, mostra que considerava a sua virgindade como uma qualidade essencial decisiva para o consentimento do seu esposo, refere a sentença.

Os juristas advertem que a sentença não diz que o matrimónio de uma mulher não virgem é nulo. Afirmam, pelas declarações dos contraentes, que o esposo não se teria casado se soubesse que ela não era virgem, e que ela o terá enganado. A lei não define qualidades essenciais, mas a jurisprudência concretiza: impotência, ocultação de um casamento anterior, passado de prostituição, seropositividade…

As anulações não se pronunciam em nome do respeito aos bons costumes e sim em relação à liberdade de consentimento. E aqui existe um vício no consentimento matrimonial que deve ser livre e consciente.

Novidade: primeira anulação tendo por motivo a não virgindade da esposa. Em plena época de Sex and the City, podemos considerar esta particularidade como uma qualidade essencial? E se os esposos consideram assim, pode a sociedade e os juízes não admitir os seus motivos?

“Há limites para a apreciação da subjectividade dos esposos? Será um assunto privado que tem a ver com crenças e valores, ou a sociedade tem direito a controlar os argumentos invocados? (…) Pode-se deixar que sejam apenas os esposos a definir o que esperam da instituição matrimonial?”

Quando a lei consagra o divórcio unilateral sem necessidade de invocar um motivo, pode distinguir entre vícios de consentimento legítimos e ilegítimos? O juiz foi coerente com esta lógica da subjectividade: já que o esposo considera que a virgindade é um elemento essencial e decisivo, concede a anulação.

Há quem diga que o decepcionado esposo podia ter-se divorciado e assim tudo se teria parecido mais moderno. Mas quem o pode obrigar a isso se a anulação é possível? Outros sugerem que o legislador exclua tudo o que invoca a virgindade, mas então será difícil definir quais as qualidades essenciais que justificam a anulação, o que poderá criar outros novos problemas.

Não é fácil definir critérios objectivos quando o Direito da Família se regula cada vez mais pelos desejos do casal. Se a lei reconhece que corresponde aos esposos decidir sobre o êxito ou o fracasso da união, se renuncia a invocar motivos objectivos para o divórcio, se nas novas regras do matrimónio impera o subjectivismo, o que não se pode fazer é proibir subjectividades alheias só porque nos incomodam. Seria como recorrer a uma cirurgia jurídica para dissimular a virgindade perdida do Direito da Família.

Carlos Tavares (Guarda), carta enviada por email

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