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A jornada

Uma e meia da manhã. O despertador arranca-me aos braços de Morfeu. Dormi apenas três horas. Lá fora está um frio húmido. Na minha cabeça começa a formar-se a ideia de que vou ter que me pôr a pedalar em direção a Lisboa. Não me apetece nada, nada. Mas o que tem que ser tem muita força. Levanto-me sorrateiramente para não despertar alguém. Ficariam preocupados se soubessem que vou tão cedo. Não me apetece o pequeno almoço. Saio para a rua, testo a iluminação da bicicleta e capacete (é bom que me vejam bem) e arranco. São duas da manhã. O resto da noite vai ser longo. Não se vê vivalma e o que me motiva é saber que o sol acabará por chegar na fria manhã. A minha música e os meus pensamentos serão a minha companhia. Belmonte, Covilhã e Fundão. No viaduto sobre a linha de caminho de ferro um susto. Pneus a chiar descontroladamente fazem-me olhar para trás e vislumbrar um “tunning” cheio de rapazolas em alta velocidade a passar por mim. Encolho-me. Já passou. A adrenalina provocada pela situação ajuda-me a enfrentar a Gardunha das cerejas. A subida proporciona-me uma paisagem fantástica. O negro horizonte começa a ser recortado pelo emergir do rei. Ainda faltarão algumas horas até que o seu calor me liberte da madrugada gelada. Alpedrinha: é hora de parar. Junto a uma fonte tomo a primeira refeição (se é que se pode chamar isso a uma barra energética). Quatro horas depois de arrancar chego a Castelo Branco, vou mais lento do que o habitual, mas também vou por minha conta. Gerir o esforço é fundamental. Vila Velha de Ródão, as suas portas para o belo Tejo. Em cima da ponte paro e contemplo o rio, espremido entre duas paredes quartzíticas. São sete e meia, o calor da manhã dá-me ânimo. A seguir virá Nisa. Lá chegado, o café de sempre onde deliciosos pastéis e sumo serão a minha primeira injeção calórica decente. A bicicleta queima tudo o que vem à rede. Por entre sobreiros dirijo-me a Ponte de Sor. Quarenta solitários quilómetros com vento de frente e um sono que começa a bater quase me desanimam. À entrada da vila uma gigantesca corticeira dá emprego a muitos. A cortiça está na moda. Ainda bem. Pouco mais há por ali depois do destino Delphi. Num café um ciclista da terra dá-me uma alternativa com menos trânsito por Coruche. O sono passa com a cafeína de uma Coca-cola. Sigo para Montargil onde a sua barragem proporcionou a construção de um oásis turístico para os mais abonados. Segue-se o atalho para o Couço onde um complexo turístico que já albergou melhores seleções portuguesas de futebol, está abandonado. Duas chamuças e dois pastéis de bacalhau são o meu almoço. Já só faltam pouco mais de cem quilómetros. Sinto-me bem. O vento abrandou e o declive é quase nulo. Cruzamento de Coruche. Resolvo aceitar a sugestão do ancião de Sor. Duzentos metros à frente um veículo abranda ao meu lado e alguém me chama: “Stor Zé Carlos!”. Os neurónios, do cansaço, fazem-me reagir lentamente. É o Marco de Manteigas. “Que faz ele aqui?” – Depois de um grande abraço, a explicação: Coisas do Facebook. Sabia que eu me dirigia a Lisboa e ele, engenheiro, por ali a trabalhar, ao passar por um ciclista, parecendo-lhe a minha pessoa, inverteu a marcha e abordou-me. O mundo é mesmo pequeno e os tipos da Guarda e arredores estão em todo o lado, pensei. Pensei que, de alguma forma, o ciclista de Sor me colocou no caminho do amigo e ex-aluno de Manteigas. Parece-me que tudo está ligado e que aquilo a que chamamos coincidências, às tantas, serão algo mais, como abordou Richard Bach no seu “Infinito”. De Coruche, pela serra até Salvaterra e daí em direção a Benavente. Na ponte, à chegada, saio à direita e enveredo por um caminho rural que me levará, por entre arrozais, milharais e outros tipos de culturas em regime extensivo e intensivo, ao cruzamento da abandonada estalagem do Gado Bravo com a sobrecarregada N10. Felizmente um par de quilómetros apenas me separam da Ponte Marechal Carmona onde me separo do assustador trânsito TIR e atravesso pelo tabuleiro pedonal. Travessia arrepiante sobre o, agora, sujo Tejo. Olho para a frente. Alturas e muita água são duas coisas que não aprecio. De Xira a Lisboa é um saltinho por entre gente e carros, assim nem dou pelo esforço final. Catorze horas e 345 km depois, cheguei. Jornada terminada, missão cumprida. Pedalar estas distâncias, está muito para lá do desafio físico.

Por: José Carlos Lopes

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