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A inutilidade das coisas

Às vezes montavam cavalos. No temor de que os cascos lhes denunciassem a clandestinidade erguiam a mão direita e faziam o sinal da cruz. Desde crianças que conheciam os carreiros mais inóspitos. Contorciam-se por entre giestas e mato, habituados que estavam a mover-se com a delicadeza de uns dedos sobre o veludo. O que levavam com eles não fazia a menor diferença. Importava sobreviver. A terra era pertença de alguns. Aceitavam esse domínio como uma predestinação. Uns comeriam o que a terra lhes dava, outros lutariam para ter um pedaço de pão.

Ali, em terra de fronteira, quem tivesse pernas robustas e um peito maior que o temor sabia aceitar o seu destino. A vida era uma espécie de funambulismo que o tempo tornaria numa arte exímia. Desconheciam relógios e guiavam-se pela escuridão. O medo faria deles bravos heróis capazes de enfrentar os bois pelos cornos. Uma espécie de dança. As mulheres, habituadas a noites vagas e leitos menos quentes, rezavam maquinalmente orações fugazes enquanto amamentavam crianças ou aplacavam outras ainda no ventre.

Houve uma noite mais escura. Um presságio revoava nas crinas dos cavalos. Nos olhos dos homens um brilho incandescente capaz de atear fogueiras. Contraíam-se os músculos de cada coração. Aquele aperto estorvava a respiração. O ciclo cardíaco não chegava a completar-se na totalidade. Um desfalecimento tingia-lhes o rosto de um branco quase perceptível na escuridão. Aquele lume na fronte abrasava-os. Mas nada lograria denunciá-los.

Bruscas lanternas metamorfosearam a noite em dia. Um deseclipse nas mãos dos guardas. Armas de fogo troavam em jorros de fogo-de-artifício. O tempo deixara de existir e era tão só aquele presente incessante. Na mente dos seis homens, montados nos seus cavalos, as mulheres e as crianças desequilibravam-se do arame. A arte do funambulismo e a dança com os bois tornara-se num ruido estridente de vozes doídas, relinchos e tiros. Os heróis debandavam na direcção da aliada escuridão. Os cavalos abatidos libertavam o odor a sangue fresco, já sem vida.

Na manhã que se seguiu nenhum habitante intentou sair de casa. Ainda que os estômagos secassem, a carne desses cavalos não serviria de alimento. As ruas mantiveram-se desertas até as sombras voltarem e a luz as desviar de novo. Adormeceu a vida com a noite sem que alguém se aventurasse nos trilhos. Era tempo de tréguas. Todos sabiam que mais cedo ou mais tarde voltariam. Para romper novos atalhos e abrir e fechar os sacos da subsistência.

Passaram muitos anos e, hoje, ao reler M Train de Patti Smith questiono-me sobre o tempo real e a minha relação indefinida com esse tempo. Se escrever acerca do passado ao mesmo tempo que vivo no presente, estarei ainda no tempo real?

Por: Maria Afonso

Comentários dos nossos leitores
António Terceiro oficinartistica@gmail.com
Comentário:
Resenha singular de tempos singulares que demonstra de uma forma geral a vida do povo sem recursos para uma sustentabilidade humanamente digna.Era assim desta forma que os latifundiários conseguiam ser lei,com pequenos reinos e uma casa senhorial pelo meio.Belo texto de Maria Afonso, aliás belos textos sempre desta poeta que descobri e que me tem ajudado a escrever as minhas memórias,com o cunho da sua visão que até numa pedra,numa poça de água ou num pedaço de terra na mão lhes aceita um coração..;”Se escrever acerca do passado ao mesmo tempo que vivo no presente, estarei ainda no tempo real?” Acho que sim e entendo a sua questão,talvez pela raridade com que as memórias se vão lembrando e pouca gente e por isso se esquecendo de um incerto futuro;o passado é certo e no presente presenteou-me com uma escolha literária que irei adquirir.Mtrain, de Patti Smith.Obrigado por isso e pelos textos neste jornal que atento sempre com prazer.
 

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