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A inutilidade das coisas

Os primeiros sinais de outono bateram-lhe no peito como se uma sombra lhe arrancasse, bruscamente, os lençóis e a abandonasse na berma de um carreiro entregue à sua sorte. Desde sempre que manhãs de alvoroço a assaltaram em passadas largas. A saudade do trote do cavalo do Rei a pisar-lhe o corpo como se ela, estendida naquela alcova, se assemelhasse à calçada ou a trilhos inusitados. Em certos dias deixava-se esmagar. Como se o amado chegasse e, depois do banho, lhe recolhesse do pó dos caminhos o barro. Assim o moldaria. Assim o sentiria. Noutras manhãs uma dor fina atravessava-lhe a pele golpeando-a.

Aquela sombra de um outono anunciado não era um alvoroço comum. A Ribeirinha intuía usualmente as coisas por antevisão. Um género raro de sibila corria-lhe na linfa. Saltou da cama. Dispensou os cuidados da aia. Vestir-se-ia sozinha. Uma premência tomara conta dela. A sua brancura disputava um tom ainda mais leitoso por entre os cabelos fulvos desalinhados. Outros homens competiam, sem que o rei soubesse, a pele que vestia o corpo daquela mulher.

Corre em direcção à torre sem sentir as primeiras folhas secas debaixo dos pés. Dali avistaria o mundo. Conhecia a orientação de Espanha de onde chegava o dia. Já o sol sabia ela desde sempre, morria para os lados do mar. O oceano era o seu elemento, mas isso ainda não adivinhava. Arquejante, com o sangue a atulhar todas as extremidades, aprimora a visão. Não distingue sinais do cavalo do Rei. Um abatimento repentino obriga-a a sentar-se e a erguer-se compulsivamente. Quem a visse ao longe julgaria tratar-se dum passo de dança.

Alinhou os cabelos. Sentada olhou para dentro de si mesma. Uma prática que lhe ficara desde que a mãe lhe mostrara aquilo que ela sabia jamais conseguir ser. Era sempre uma espécie de dèjá vu. Caminhos poeirentos bordados de luz. Desertos incomuns. Mares purgados. Os pés nus. Linhas na palma das mãos. Um vigor violeta a moldar a íris. E aquele sopro que a neve desfaz dentro do coração. Uma diástole. A dor incendiada na visão do amor.

Uma bruma imprevista ergueu-se como uma mão gigante. Um mar imenso a envolve-la. O calafrio que a trespassou falou num linguajar ecoante. Ali sozinha. Lívida. O Rei já lhe falara da enormidade do mundo. De cidadelas inexpugnáveis. De catedrais. De vitrais coloridos. Um dia tentou ensiná-la a rezar. Indomável, aprenderia a fazer, tão só, o sinal da cruz. A apreensão que a invadira quase a tornou maquinal. Se desse um passo em frente penetraria na humidade da bruma. Sumiria num túnel a delonga dos dias. O amor não mais seria relâmpago trepidante no olhar. Talvez o Rei lhe dedicasse uma cantiga. Porque lhe tardava o seu amigo na Guarda.

Regressara a sombra que a aturdira de manhã. Um quase absurdo estendeu a luz ao bulício interior. Era outono e a alquimista da praça teria que agarrar as cores e os cheiros para dulcificar os paladares. A Ribeirinha visitava-a com frequência. Numa ingénua cumplicidade sempre se completaram. O caminho de volta trouxe-lhe o som pisado das primeiras folhas secas. Esvaziou o ar quente da alma. Era urgente um novo respirar que a ungisse por dentro.

Seguiu pela rua a preto e branco. Na esquina da rua, como se fosse a esquina de uma vida abalroou o olhar da alquimista. Um dizer sem palavras que a Ribeirinha abrigou. Sem vacilar, como se sempre vigiasse esse dia, vestiu-se de branco. Descalça, sobre as pedras da calçada que arrefecia, pressentia a inevitável partida. O amor perene como as paredes densas das casas. Os olhos encharcados de um cinzento de granito. De um cinzento de mar.

Por: Maria Afonso

Comentários dos nossos leitores
Luisa Gómez Torregrosa.producciones@gmail.com
Comentário:
Bello que te toquen el alma!
 

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