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A inexorabilidade do imutável

Durante décadas, Verão e Agosto eram sinónimo de gente e dinâmica económico-social no interior do país. Anos mais recentes mostraram que esta galinha dos ovos de ouro já não era mais do que a – provavelmente única –janela de oportunidade dos agentes económicos destas regiões. Contudo, os últimos verões confirmam um conjunto de circunstâncias que fazem desta altura do ano um paliativo de eficácia decrescente.

Os fatores são diversos e confluem para agravar o problema: desertificação e envelhecimento do interior; erosão do sentimento de pertença dos migrantes; afastamento progressivo das gerações descendentes de emigrantes relativamente às origens; escassa atratividade da oferta providenciada pelo tecido económico, social, cultural e desportivo destas zonas do país. A lista é longa, mas os exemplos acima cimentam as conclusões adiante.

O interior continua a olhar para o turismo como eixo fundamental, esquecendo que não é, nem pode ser, um fim em si mesmo. O turismo é resultado da conjugação entre património histórico e dinâmica local. Mas não raro negligencia-se o primeiro e esquece-se a segunda. Trancoso é exemplo paradigmático. Com ruas sujas e caixotes do lixo atolados, a dinâmica consiste unicamente na realização de feiras e festas de utilidade duvidosa. Finda a cerveja e as febras, fica uma mão cheia de nada.

Com turma e meia no 10º ano do próximo ano letivo na escola pública e o projeto de uma unidade de saúde privada há muito arrumado, Trancoso ignora os dois principais vetores de desenvolvimento de uma vila/cidade do interior: educação e saúde.

Em vez de investir numa secundária depauperada, que funciona sem rei nem roque, preparando a já em curso competição intercidades por alunos, o executivo de Amílcar Salvador investe forte numa escola primária que não terá alunos e que dentro de dez anos estará fechada. Em lugar de criar e promover condições para assegurar serviços de saúde a uma população envelhecida, o executivo trancosense quer investir numa pista de tartan no estádio municipal. E em detrimento da reabilitação de edifícios devolutos no centro histórico, para posterior disponibilização para arrendamento de baixo custo, de forma a fixar famílias no interior das muralhas e assim lhe dar vida, Salvador vai gastar milhares de euros numa réplica das Portas d’El Rei. Uma espécie de maquete para colocar num museu, perguntará o espantado leitor. Não, uma réplica a larga escala para instalar numa… rotunda. É a prova de que nunca é tarde para cometer os mesmos erros de sempre.

Mas o executivo trancosense tem outra estratégia, acredita no turismo como polo de desenvolvimento, dir-me-ão. Certo, mas nesse caso para que servem as largas dezenas de postos de trabalho de perfil administrativo criados nos últimos meses? Isto ao mesmo tempo que se reduzem os quadros que trabalham no terreno, aqueles que podem assegurar as ruas limpas e asseadas que os turistas esperam ter a recebê-los. Quando as dificuldades financeiras regressarem a Trancoso (e ao país), teremos sempre monumentalidades e fontanários nas rotundas para nos alegrar (ou não). A crise financeira foi para já ultrapassada, o atraso não.

Por: David Santiago

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