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A idade da reforma

EX-ALUNOS

Eu nasci em 1945. Foi numa aldeia da Beira Alta, uma pequena comunidade rural fronteiriça onde, nesse tempo, ainda se extraía da terra o sustento das famílias, e se vivia, sem subsídios, com pouco conforto, ao ritmo das estações do ano e dos ciclos da produção agrícola, segundo costumes ancestrais, num relacionamento interpessoal complexo, muito marcado pela posse da terra e pela religiosidade. Foi no último ano da Grande Guerra, três meses depois da explosão da bomba atómica em Hiroshima, que encerrou as hostilidades no Pacífico, e conduziu à rendição do Japão, apresentada pelos representantes do Imperador ao General MacArthur, a bordo do navio da Armada Americana, o USS Missouri. E foi o ano em que o Mundo mudou para não mais voltar a ser o mesmo. Nesse tempo de S. Pedro, “eu estava no mundo e o mundo estava em mim” como disse Eduardo Lourenço, e eu vivia a suave felicidade de possuir a Natureza toda para mim.

O Liceu

O tempo do Liceu da Guarda, que se seguiu, foi de descoberta. Foi a porta de entrada para a vida urbana, ampliada pelo cinema do velho Cine-Teatro e pela televisão, a preto e branco, do Monteneve, do Mondego ou da Casa da Mocidade, fonte de uma enculturação americana de westerns, de índios e de cowboys. Foi o nascer de amizades para a vida, condimentadas de revolta contra a “situação”, das leituras cruzadas de Aquilino, de Eça, de Roger Martin du Gard e Virgílio Ferreira com o “Mundo de Aventuras”, o “Condor” ou os policiais de Ellery Queen, das noitadas excessivas na tasca do Regalo do Boi, dos jogos de Xadrez nas mesas do Cafés, do filosofar sobre a existência de Deus, nas caminhadas, de ida e volta, entre a Praça Velha e o Sanatório.

A Universidade

O tempo da Universidade mostrou-me um mundo mais vasto. A grande cidade, abriu-me a convivência com outras classes sociais, foi como uma antecâmara para a vida adulta, tudo misturado com as canções de protesto, as manifestações de rua, já com o espírito do “Maio 68”, os amores e desamores, os sonhos de transformar o mundo. Foi o partir à descoberta da Europa, em autostop, uma espécie de interrail, e as emoções interculturais dos cursos de Verão numa Europa mais avançada, uma espécie de Erasmus. E, chegado a jovem adulto, feito o serviço militar, era o tempo de começar a fazer pela vida, tudo muito fácil e diferente de agora, parecia que se abria uma passadeira vermelha para alcançar o primeiro emprego, havia a explosão do desenvolvimento, era notória a falta de jovens licenciados no mercado de trabalho.

O Trabalho

A experiência numa multinacional do ramo alimentar (a Nestlé) deu-me o calejamento para a aventura que se seguiu, fazer uma empresa (a Marktest), primeiro a medo, depois confiante, sempre a acreditar como no futebol. Tive a sorte do meu lado, encontrei as pessoas certas, entrei no momento certo, e no sector certo (marketing), o que mais se expandia. Estes foram os anos que viram nascer o “consumidor”, colocado perante uma abundância de produtos e bens nunca antes vista nem imaginada, foi uma autentica “Idade de Ouro”. Consumidor que tomou o lugar do cidadão, que alterou a forma de produzir, e fez nascer a Grande Superfície, e que quase acabou com a pequena loja de bairro. A este fenómeno que tornou o mundo mais pequeno, nós chamamos hoje a globalização. E eu, colado a ela, bebi da cornucópia que ela proporcionou, e aproveitei como poucos do sucesso que ela oferecia.

E, tendo atravessado a ponte temporal que liga aquele mundo antigo que me viu nascer ao mundo actual do automóvel, da televisão e da Internet e do telemóvel, reconheço hoje, tive o privilégio de ter vivido os 65 anos mais empolgantes da história da nossa civilização, onde aconteceram coisas extraordinárias e onde a vida das pessoas se transformou de uma forma radical.

A Reforma

E eis-me, agora, chegado à idade da reforma, regresso às origens, à procura das raízes, acreditando que é a “pertença” e não a “posse” que importa privilegiar. Adquiri a consciência de que o mundo está no fim de um ciclo, que fomos demasiado vorazes no repasto que nos foi oferecido, que a Idade de Ouro está a chegar ao fim, e tornei-me crente da convicção de que temos de procurar outros caminhos. A Fundação Vox Populi e a Associação Rio Vivo são pequenas pedras que eu ofereço, a mim e aos outros, para construir essa via. Sustentabilidade é a palavra de ordem, economizar os recursos, valorizar o que é local, produzir mais, são as opções que nos restam.

Luís Queiros

lqueiros@marktest.pt

www.poscarbono.blogspot.com

(subtítulos da responsabilidade da redacção)

A idade da reforma

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