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A guerra está aqui ao lado

Tresler

O repórter Foley a ser executado por um inglês no Iraque, 100 mortos palestinianos por cada morto israelita, um avião atingido por um míssil sem paternidade são as imagens de guerra quente que nos têm dado cabo da paciência. A guerra é contemporânea de todas as fases da humanidade, nunca parou de verdade, é a realização de um instinto-base da espécie humana e das outras espécies animais: dominar território e disputá-lo a quem parece mais fraco ou não o merecer. Se pensávamos que a doutrinação religiosa podia inverter esta tendência e melhorar o homem “dos instintos”, descobrimos afinal que, antes de o homem ser irmão de outro homem, é o seu lobo se ele lhe causar estorvo e turvar a sua água. E se não foi ele que turvou, a culpa é da geração anterior. A existência do homem numa entidade coletiva chamada nação e a aculturação a essa ideia só fez refinar esse instinto de insegurança e levou afinal a religião a derivar para o mesmo caminho, semeando o fanatismo.

Entre as nações ou se fazem alianças (e se cultivam) ou se gere a guerra fria, uma espécie de guerra à espera de melhores dias para se incendiar. No momento adequado, dá-se a invasão, o ataque nem que seja preventivo, adjetivação irónica quanto baste. Com a sociedade da comunicação em “on”, faz-se a propaganda necessária para que as sociedades e o “concerto das nações” aprovem ou não desaprovem e aí vai míssil ou bomba. Atualmente as sociedades mais evoluídas jogam na guerra “limpa” (bombardeamento aéreo, uso de drones, ataques preventivos, apoio a milícias), as outras na guerrilha ou no terror das execuções ou dos raptos. Tudo devidamente enquadrado pelos media ou pela Internet, ou seja pela propaganda.

E no entanto nos tempos anteriores a uma guerra até é possível detetar discursos ou atos pacificadores e conciliatórios entre países ou fações que se vão bater. Os casamentos entre as coroas europeias tinham a função de ir cimentando alianças ou aliviando tensões (o Kaiser alemão em 1914 era neto da rainha Victoria de Inglaterra, a princesa Isabel da Bélgica tinha esse nome em homenagem à sua tia Isabel, imperatriz da Áustria, assassinada no final do séc. XIX). Mas a guerra é uma força que está “lá”, não parecendo estar. É como se soubéssemos que “aquilo” há-de vir por força de qualquer força imparável, um destino que ninguém consegue dominar. Quem diria que a Europa estaria hoje à mercê dos nacionalismos e que a mancha islâmica semearia o fanatismo como hoje se vê?

Se há guerra que nos deixe embasbacados com a perversidade e cegueira humanas, é a 1ª Guerra Mundial, da qual assinalamos o centenário. Por alguma razão alguém a chamou a “guerra demente”, epíteto verdadeiramente apropriado ao que se segue. Foram 9 milhões de militares mortos, operações de guerra de trincheiras, sobretudo na França e na Bélgica, que nos parecem hoje surreais, com as tropas a viverem em covas, na lama e na humidade, a avistarem o inimigo logo ali, a avançarem poucas dezenas de metros a cada surtida e a terem nessas operações diariamente centenas ou milhares de mortos simplesmente ceifados pelas metralhadoras ou pelas granadas. Os generais mandavam avançar e era vê-los cair, com alguns a morrer no primeiro ou segundo dia de guerra. Foram afundamentos de navios em que a Inglaterra e a Alemanha se especializaram, quase sempre com centenas de mortos a cada naufrágio, mas às vezes com milhares, como no caso do “Lusitânia” com 1889 mortos e o recorde de um navio turco de transporte de tropas com 6.000 vítimas. A Alemanha entretanto especializara-se nas represálias quando a população civil ou os snipers matavam militares alemães e, para exemplo, eram fuzilados em praça pública algumas dezenas ou centenas de civis. As deserções ou os “fingimentos” de ferimentos eram castigados dos dois lados com execuções no teatro de operações. Neurose de guerra ou depressão não eram desculpa em 1914.

E no entanto todos ansiavam no primeiro ano de guerra que ela fosse rápida e a propaganda em cada país era essa mesma. Nada disso: a sede era grande, os ódios afinal eram maiores do que se pensava, as questões fronteiriças somadas eram muitas, os preconceitos entre teutónicos e eslavos maiores ainda, os territórios para ocupação em África e Ásia estavam ali à mão com áreas de influência a partilhar e a Alemanha desejava ter a influência mundial que invejava no Império Britânico, como se tivesse chegado atrasada a essa corrida. E a sede de territórios ao lado de cada Império misturava-se com a sede de independência de certas regiões do lado de lá de cada país. Essas regiões eram incentivadas a lutarem contra o inimigo e prometiam-se aos países neutrais parcelas de território caso aderissem à guerra. Como dizia Martin Gilbert numa obra memorável recentemente publicada e distribuída com o EXPRESSO, “Nenhuma rivalidade só por si ou local ou região disputados causou a guerra: e no entanto, todas as rivalidades e disputas combinadas criaram e aceleraram os sentimentos e a oportunidade que tornaram a guerra imaginável, portanto possível e por fim desejável”. O autor opta aliás por uma narração semeada de testemunhos dos participantes, uma espécie de “história do sofrimento”, a única estratégica narrativa possível para darmos conta da abjeção que esta guerra constituiu.

(Martin Gilbert, A primeira guerra mundial, A Esfera dos Livros, ed. Portuguesa 2007, ed. original 1994)

Por: Joaquim Igreja

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