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A Fisga

Entrementes

No tempo em que havia tempo para brincar, no tempo em que brincar era devota obrigação, os putos da minha idade (há quantos anos…) escarafunchavam as giestas, ou os castanheiros mais jovens em busca de uma forqueta. Um pauzito que haveria de servir, juntando-se-lhe uns elásticos retirados à câmara-de-ar furada de uma qualquer bicicleta, mais os atilhos do mesmo material e uma tira de cabedal de sapatos reformados, para construir uma fisga. Ou “atiradeira” como outros lhe chamavam. Que se cuidasse a passarada que uns havia que onde punham o olho punham a pedra…

Para os menos hábeis nisto da construção de objectos de brincadeira, sempre havia por perto o avô compincha que, mesmo à socapa das preocupações paternais e dos sermões da senhora professora, acedia às lamúrias do neto e lá talhava, a poder de navalha, uma bela, centrada e eficiente fisga.

Podem pois calcular o espanto deste vosso humilde escriba quando, no passado sábado, em terra que no tempo da outra senhora, foi chamada de “a aldeia mais portuguesa de Portugal”, se deparou com o exemplar que a foto documenta. Não, não estava numa qualquer “Casa China”, nem em banca de rua de vendedor ambulante.

Lá estava ela a embonecar a prateleira recheada de uma casa de artesanato!… Espicaçado pela forma pouco nossa da fisga, acicatada a curiosidade por, ainda por cima, ostentar garridamente a denominação do luso país e do galináceo de Barcelos, lá peguei nela. Esmiucei-a, virei-a, revirei-a, voltei a virar e… pasmo dos pasmos, uma etiqueta amarela e a letras de contratos de seguros, esclarecia, preto no branco, ou melhor, no amarelo, ter sido feita em terra de que nem o nome digo em atitude solidária com o Prémio Nobel da Paz 2010… De ficar, o que se diz, de olhos em bico…

Tem tudo a ver, pois então!… Portugal, aldeia, loja de artesanato e… produtos importados de um dos expoentes maiores da tão propalada globalização. Triste país este!…

Triste exemplo para quem, sobretudo nos últimos tempos, tem ouvido diariamente que é fundamental apostar nos produtos nacionais para espicaçar a economia!…

Triste exemplo dado, numa aldeia classificada como histórica, aos milhares de turistas, nacionais e estrangeiros, que a visitam!…

Triste demonstração de como se aniquilam valores próprios em nome de um deus chamado preço concorrencial!…

E tudo isto apenas a partir de uma simples fisga… Mas lá que alguns com responsabilidade assumida deveriam ser acordados nem que fosse aà fisgada, lá isso deviam…

Por: Norberto Gonçalves

A Fisga

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