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A falácia da propaganda

Razão e Região

Nos anos vinte, Walter Lippmann formulou o interessante conceito de «estereótipo» para a área da comunicação social. O significado deste conceito é muito parecido com o dos famosos «idola» de Bacon. Em palavras simples, ambos designam «noções» que circulam na opinião pública e que funcionam como descodificadores primários e automáticos da realidade, como «chaves de leitura» elementares do real. Acresce que os «estereótipos», tal como os «idola», estão carregados de conotações, encerram «preconceitos», induzindo leituras simples, mas distorcidas e parciais da realidade.. Os «estereótipos» correspondem globalmente àquilo que, habitualmente, vem sendo designado por ideologia, no sentido instrumental. Não exactamente como mentira programada, mas, pelo menos, como leitura parcial e enviesada do real. Exactamente. Porque a ideologia, no seu sentido mais profundo, envolve uma reelaboração racional de ideias e de noções tendente à construção de uma visão estruturada do mundo que possa funcionar como uma espécie de «cartografia cognitiva» que permita aos indivíduos orientarem, de forma fácil e simples, os seus comportamentos. Neste sentido, o conceito de estereótipo é mais limitado do que o conceito de ideologia. É mais parecido com o conceito de «ideologia parcial» do que com o conceito de «ideologia total», de que falava Karl Mannheim. Em boa verdade, o conceito de «estereótipo» é uma autêntica função do conceito de «opinião pública», só ganhando sentido numa visão da sociedade que integre este conceito como seu elemento estruturante. É aqui que ele se distancia do conceito de ideologia, que pode muito bem prescindir do conceito de opinião pública. Neste sentido, é um conceito muito mais actual, mais moderno e mais funcional a uma descrição do funcionamento da sociedade moderna.

Ora bem. Estas distinções vêm a propósito de um fenómeno que se está a passar com as reacções da oposição e de inúmeros comentadores, editorialistas e publicistas às recentes medidas do Governo de José Sócrates. Fenómeno que, de resto, se verificou abundantemente com o segundo Governo de António Guterres. E que fenómeno é? É precisamente o fenómeno dos «estereótipos». Num estudo que fiz sobre as reacções dos media aos resultados das eleições de 1999, à formação do Governo e aos seus primeiros tempos de vida, detectei, nos media, uma concentração anómala de «estereótipos» de um certo tipo – negativo – sobre o então Primeiro-Ministro. Refiro dois: a indecisão («Guterres não decide») e o da ausência permanente no estrangeiro e o correspondente «fastio» pela política interna. Estes «estereótipos» viriam a ganhar uma enorme dimensão ao longo dos cerca de dois anos de Governo, culminando num terceiro e fatal «estereótipo»: um homem (Guterres) já sem soluções. Já no início de funções do XV Governo Constitucional haveria de se juntar um outro «estereótipo» (este da lavra do Governo de então e para efeitos de autolegitimação): Guterres, o gastador. O estudo exaustivo da evolução dos estereótipos, da sua fixação na opinião pública, dos seus promotores, dos seus ritmos e dos seus devastadores efeitos na opinião pública não está feito. Seria, todavia, muito interessante fazê-lo, começando desde os primeiros dias do XIV Governo Constitucional.

Ora o que se está já a verificar, a um ano de Governo do PS, é ao «ensaio» de um novo tipo de «estereótipo» a fixar na opinião pública através da repetição a um ritmo martelante. E que «estereótipo» é este? O da «propaganda». Quem esteja a seguir com atenção os media – dos jornais à televisão – constata, de novo, uma anómala concentração de elaborações em torno do tema «propaganda», sendo a mais curiosa de todas a de António Barreto (Público, 02.04.2006). Em que consiste? No reconhecimento inevitável do interesse das medidas de simplificação administrativa e de reorganização da Administração Central, num parágrafo, para, logo de seguida, se proceder à crítica radical, em quatro parágrafos, da alegada «intoxicação publicitária» promovida pelo Governo, de que resultaria «um colossal asco pelo esforço de publicidade», vista «ignorância atrevida» de governantes com considerariam os seus concidadãos «mentalmente débeis». Nada menos! Mas pouca importância teria a palavra do sociólogo castigador se ela não se fizesse eco de uma «chave de leitura» da acção do Governo que tende a generalizar-se e a radicalizar-se sob diversas formas e com diversos actores. Porque o «estereótipo» é assim: radicaliza um aspecto da questão para que se torne mais evidente e, assim, se possa generalizar, entrando directamente no sistema mediático e determinando em parte o funcionamento da «opinião pública». E como já vi o poder demolidor dos «estereótipos», pressinto o poder desestabilizador que este poderá vir a ter se se enraizar na opinião pública. O que não fará bem ao élan reformista deste Governo. E, por consequência, ao País.

Por: João de Almeida Santos

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