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A Democracia e a Rede

Razão e Região

Algo está a mudar, a grande velocidade, no modo de organização das sociedades modernas. Mantendo-se o modelo democrático representativo como modelo de excelência (ou, pelo menos, como o menos mau dos modelos), a verdade é que no seu interior estão a acontecer mutações tão profundas que não é possível desconhecê-las. Essas mutações já estavam, de algum modo, a acontecer quando o modelo mediático de comunicação (da imprensa escrita ao audiovisual) ainda detinha o monopólio da comunicação nas nossas sociedades. Era um modelo que assentava estruturalmente numa relação lógica muito simples: a relação emissor-receptor. Centros de recolha, edição e difusão (redacções) produziam informação que, depois, era distribuída a milhões de indivíduos (leitores, ouvintes, espectadores). O modelo poderia ser traduzido, seguindo Manuel Castells, na seguinte fórmula: «one-to-many», «de um para muitos». Mas, como dizia, já com este modelo as mutações que estavam a acontecer eram absolutamente disruptivas: o poder electivo tornava-se cada vez mais anémico perante a colonização cada vez mais intensa do espaço político pelo poder mediático. A este estado de coisas já uma vez chamei «anemia democrática». Esta anemia resultava da crescente confiscação da representação política pelo poder mediático. É verdade. Ora o que hoje já está também a acontecer, com o crescimento exponencial da Rede, é que a anemia deixou de afectar exclusivamente o poder electivo para passar a afectar também o próprio poder mediático. Ou seja, o que começa a ser evidente é que os media tradicionais perderam o monopólio do acesso ao novo espaço público, cedendo, assim, à Rede uma grande fatia do poder entretanto conquistado. Em primeiro lugar, porque eles próprios tiveram que migrar para a Rede, não só para ocupar novos espaços de poder disponíveis como também para falar novas linguagens. Em segundo lugar, porque com esta transformação da natureza do espaço público – um espaço intermédio, como alguns já lhe chamam – o modelo de comunicação se alterou radicalmente, passando do «um-para-muitos» (broadcasting) para o «muitos-para-muitos» («many-to-many»), ou seja, passando da clássica lógica substancialista própria da relação sujeito-objecto (emissor-receptor), para uma lógica de tipo relacional, onde os sujeitos e os objectos deram lugar a variáveis independentes em relações múltiplas, autónomas e diferenciadas entre si. Relações comunicativas que se passaram a processar num imenso espaço universal sem centro. Em terceiro lugar, este espaço intermédio é um espaço livre e universal ao qual acede quem quiser, sem condicionamentos quer para obter informação quer para produzir e difundir informação, mas, sobretudo, ao qual pode aceder para se protagonizar no espaço público universal sem ter de pedir licença aos senhores da informação, os famosos «gatekeepers». É claro que para este espaço intermédio – porque é um espaço de convergência universal -, acabam, inevitavelmente, por migrar as próprias relações de força que hoje se verificam no exterior. Mas uma coisa é certa: para se aceder ao espaço público universal já não é necessário passar pelo controlo apertado dos «gatekeepers». E é aqui que reside a grande diferença. Nunca o indivíduo singular teve ao seu alcance uma tão grande possibilidade de afirmação, de participação, de expressão e de difusão como a que hoje a Rede lhe dá. E isso pode constituir uma revolução no próprio tecido democrático das nossas sociedades. Porquê? Como sabemos, é este indivíduo singular que representa o verdadeiro referente ontológico da Rede. A universalidade da Rede tem o seu efectivo contraponto no indivíduo singular, constituindo este a verdadeira alavanca de Arquimedes que pode transformar o mundo. Ora o mesmo se passa com a democracia. Ou seja, é no indivíduo singular (aqui designado por «cidadão») que reside a verdadeira função vital da democracia («um homem, um voto», voto secreto). Assim, pela primeira vez, podemos encontrar um paralelismo perfeito ou a uma simetria perfeita

entre um sistema político (neste caso, o sistema democrático representativo) e um modelo de comunicação (neste caso, o novo modelo de comunicação inscrito na rede). E, por isso, a questão que se pode pôr é a seguinte: não teremos chegado a um estádio em que a democracia representativa, ao contrário do que muitos pensam, pode finalmente concretizar aquela que era a sua utopia originária e que sempre pode ser traduzida nos termos ideais do imperativo categórico kantiano: age como se a máxima da tua vontade [individual] pudesse valer ao mesmo tempo, e sempre, como princípio de uma legislação universal.

Por: João de Almeida Santos

Comentários dos nossos leitores
andré bandeira amelobandeira@hotmail.com
Comentário:
Professor, Quem parte de números primos, conta em números primos e, de vez em quando, lá um jornal anuncia o maior número primo descoberto. Do mesmo modo, quem parte de «cidadão», chega inevitavelmente ao Imperativo Categórico. Quem parte da Democracia representativa, chega inevitavelmente a um indivíduo como representação/mediatização. Habermas, em 2005, em «Zwischen Naturalismus und Religion» lançava foguetes por isso. Mas quem lhe disse que o ser humano é representação? Para quem experimentou a Ditadura, pode parecer que sim. Para quem experimentou o deserto, a dispersão e a luta de todos contra todos, o ser Humano é também Deus, o Qual é insondável. Isso mesmo: estamos para provar que a Democracia é o menor dos males e que este critério do menor dos males não é a aceitação da depressão colectiva ou do robusto optimismo, do melhor dos mundos possíveis. Socialismo liberal, sim, defenderam-no os anarquistas há 200 anos.Sem Estado, sem Poder. Resta saber onde encaixar este anarquismo num mundo moderno e real. Eu escolhi um Rei. André Bandeira
 

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