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A crise portuguesa e o apetite chinês

Theatrum mundi

Como os restantes dirigentes europeus, também José Sócrates foi abalroado pela crise. Nos primeiros tempos negou-a e defendeu que a crise provocada pelo subprime só marginalmente atingiria Portugal; depois escondeu-a, e o défice orçamental cresceu a um ritmo que aguçou o apetite especulativo dos mercados financeiros, tornou insustentável o endividamento do país e o colocou à beira da intervenção do FMI. Depois da crise grega e da crise irlandesa, também é preciso falar da crise portuguesa. A questão é a de saber se Novembro de 2010 representa o seu pico ou mais uma etapa da tragédia anunciada.

Um pequeno flashback ajudará a recompor a tragédia. Depois do que chamou consolidação orçamental, levando o défice para os 3% do PIB de acordo com o pacto de estabilidade europeu, o governo socialista começou a preparar a reeleição de Outubro de 2009 ao abrigo da retórica da luta contra a crise e da protecção do estado social. O verdadeiro estado das contas públicas foi escondido, e nem a vitória nas eleições (sem maioria absoluta no Parlamento) fez despertar o novo executivo para a necessidade de arrepiar caminho. O modelo económico manteve-se inalterado, assente como esteve, nos últimos anos, na execução de grandes obras públicas, na dissolução da capacidade produtiva, na promoção de onerosas de parcerias público-privado e no aumento exponencial do endividamento externo. O alarme da crise grega, em Maio passado, também pareceu não deixar marcas, para lá da introdução na retórica de Sócrates da centralidade de Portugal na defesa do euro, mesmo quando a pressão dos parceiros europeus para a tomada de medidas drásticas não deixava qualquer dúvida sobre a erosão da soberania orçamental. A apresentação do PEC, o programa de estabilidade e crescimento, junto da Comissão Europeia concentrou as expectativas quanto à decisão de agir, mas os mercados foram avolumando as dúvidas relativas à capacidade do país de pagar uma dívida que se aproxima, e poderá mesmo superar proximamente, os 100% do PIB, fazendo disparar os juros da dívida e o respectivo spread.

Mas o momento crítico da crise portuguesa coincidiu com o longo processo de aprovação do orçamento de estado (OE) para 2011 que se prolongou desde finais de Setembro a princípios de Novembro e ameaçou deixar o país à beira de um ataque de nervos. Não dispondo de apoio maioritário no Parlamento, o governo precisou de negociar o OE com a oposição, mas rapidamente se tornou evidente o seu isolamento face às várias oposições que, quer por razões ideológicas quer por cálculo estratégico, foram declarando a sua negativa a votar o documento. Após o Conselho Europeu do Outono, realizado em Bruxelas nos últimos dias de Outubro, foi estabelecida uma comissão formal de negociação entre o Ministro das Finanças e uma representação do PSD, o principal partido da oposição. O acordo foi atingido, mas o arrastamento do processo pôs de manifesto de que forma a aprovação do OE português para 2011 se transformou em mais uma encruzilhada política europeia, com Merkel, Sarkozy e Barroso a pressionarem Sócrates e Passos Coelho, o líder da oposição, e os mercados financeiros a aproveitarem a indecisão quanto às contas e ao crescimento económico português para exigirem retribuição recorde para a compra das obrigações do Tesouro (6,8%).

Após 25 anos de integração europeia e de promoção social no seio do grupo dos países ricos, Portugal volta a confrontar-se com os fantasmas de um passado recente. De facto, e no ano em que se comemora o centenário da implantação da República, também regressam os fantasmas das contas públicas e a fragmentação partidária que ensombraram a I República e conduziram à sua queda. E regressa a instabilidade que marcou os primeiros anos após a Revolução de 1974, designadamente o espectro da intervenção do FMI que, em 1978 e em 1983, legitimou a adopção de planos de austeridade recessivos e socialmente muito penalizadores. Apesar de anunciado, em 2010 o FMI ainda não aterrou em Lisboa, mas as políticas recessivas e socialmente penalizadoras que constam da fórmula do FMI foram finalmente assumidas pelo governo socialista como parte essencial do OE para 2011. Entre elas, contam-se a subida do IVA de 21% para 23% no escalão mais alto, o corte dos salários da função pública até 10% para os salários mais elevados, o corte de prestações sociais como o abono de família e o congelamento das grandes obras públicas como o comboio de alta velocidade e o novo aeroporto de Lisboa. Para os críticos de esquerda, é o ataque ao estado social e as duas centrais sindicais convocaram, pela primeira vez desde 1988, uma greve geral conjunta para o dia 24 de Novembro. Para a oposição de direita, a questão é a do despesismo do governo socialista que engordou o estado para proveito próprio e o próprio PSD, que se absteve na aprovação do OE e permitiu que passasse, remete para a primavera a comprovação da capacidade de cumprimento das metas orçamentais e a mais do que anunciada crise política e ajuste de contas com Sócrates. No meio de tudo isto, a campanha para as eleições presidenciais de Janeiro e a impossibilidade constitucional de o Presidente dissolver o Parlamento nos últimos 6 meses de mandato e nos 6 primeiros do seguinte, o que tem constituído um verdadeiro seguro de vida para Sócrates.

Fazendo o balanço, o OE para 2011 foi aprovado, mas nem os mercados financeiros acalmaram, nem o espectro da crise política amainou, nem a possibilidade de intervenção do FMI desapareceu, apesar de alguns seus antigos dirigentes virem a público sublinhar que Portugal conseguirá resolver sozinho os seus problemas orçamentais. E contudo, um novo dado promete trazer novidades no combate à crise portuguesa, qual seja o apetite chinês por maior influência política e económica na Europa através dos países periféricos da União. O Presidente Hu Jintao deslocou-se a Lisboa no fim-de-semana de 7 e 8 de Novembro e na agenda estiveram a compra de dívida pública portuguesa, a participação do Industrial and Commercial Bank of China no capital do Banco Comercial Português, o principal banco privado português, os interesses chineses na exploração do porto de águas profundas e na plataforma logística de Sines e a entrada no capital da EDP, a grande produtora de energias renováveis. As declarações de Hu Jintao e Sócrates convergiram no objectivo da consolidação de uma parceria estratégica entre os dois países que, de acordo com os analistas, deve ser visto como oportunidade para ambos. A possibilidade de reforçar a entrada das empresas portuguesas no mercado chinês e a utilização de Portugal como facilitador das relações com o Brasil e Angola, cruciais para a China. No plano europeu, Portugal é dos países mais favoráveis à atribuição à China do estatuto de economia de mercado e do levantamento do embargo ao comércio de armas, enquanto a compra de dívida pode ser uma oportunidade para a China aliviar a pressão internacional sobre o valor do yuan e diversificar as suas reservas cambiais. E, acima de tudo, do ponto de vista português, a expectativa de que a compra de títulos da dívida portuguesa por parte da China dê um sinal aos mercados sobre a credibilidade da economia portuguesa e faça descer os juros que permitem regressar à velha política do endividamento de que não pode nem sabe prescindir.

Por: Marcos Farias Ferreira

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