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A crise

Razão e Região

Sobre a actual crise, poderíamos fazer um primeiro exercício reflexivo. Um exercício que, de resto, toca de perto os temas centrais sobre os quais os analistas hoje estão a reflectir. Li três ensaios muito esclarecedores, de respeitados analistas, sobre o assunto e julgo que será interessante tê-los como referência. Falo de Geoff Mulgan («O que acontecerá se o capitalismo fizer “flop”»), de Richard Florida ( «Muda o mapa económico. Procura-se uma classe criativa») e de Fareed Zakaria («O manifesto capitalista: ganância é bom»). E, a partir das suas reflexões, ponho um primeiro problema: Portugal conhece hoje uma rede rodoviária excelente, um parque automóvel óptimo, um território pequeno e facilmente percorrível. Logo, boas condições de mobilidade. E esta é, como se sabe, uma variável muito importante para a economia, ou seja, para a mobilidade de mercadorias, de serviços e de pessoas. Óptimo, portanto. Mas, ao mesmo tempo, Portugal tem índices de propriedade imobiliária elevadíssimos. Ou seja, as vias de comunicação permitem uma mobilidade muito elevada da economia e do mercado, mas o facto de os cidadãos estarem vinculados a um enorme parque habitacional próprio impede-os de se deslocarem e, portanto, de se oferecerem a este mercado. As razões são conhecidas. Não existe um mercado de arrendamento e, por isso, as pessoas preferem descontar para pagar uma propriedade futuramente sua – mesmo que o preço mensal seja superior – do que pagar uma renda por algo de que não serão proprietários. As consequências são duas: por um lado, endividamento familiar elevado e de longa duração; por outro, elevada rigidez no mercado de trabalho. Ou mais simplesmente: aumenta o endividamento familiar e diminuem as condições de acesso ao mercado de trabalho. Ou ainda: estamos perante uma enorme mobilidade na circulação de mercadorias e perante uma rigidez incomportável no mercado de trabalho. Sobre os USA, onde, apesar de tudo, a relação do cidadão com a propriedade imobiliária é muito diferente, diz o célebre autor do conceito de «classes criativas», Richard Florida: «os lugares com um alto índice de propriedade imobiliária induzem um maior nível de desemprego». «O crescimento dos índices de propriedade imobiliária foi acompanhado por uma menor ductilidade da sociedade americana», provocando uma rigidez deslizante no mercado do trabalho», o que é um péssimo sinal para a economia («Reset», n.º 115, 2009: 44). Outra questão reside na determinação dos sectores estruturalmente mais predispostos para a queda do emprego: ainda segundo Florida, que cita Michael Mandel, entre 2007 (12) e 2008 (11), enquanto, nos USA, o sector «material» (a produção, a construção, a extracção e o transporte) perdeu cerca de 1, 8 milhões de postos de trabalho, o sector «imaterial» (o da «classe criativa»: cientistas, engenheiros, managers e especialistas) registou um aumento de cerca de meio milhão de postos de trabalho.

Uma outra questão presente nestas reflexões é a questão do consumo e do seu financiamento. Também aqui se verifica um problema estrutural. Em primeiro lugar, o financiamento ao consumo gerou logo uma primeira dificuldade, quando parecia gerar um movimento virtuoso: o endividamento tendia a induzir disponibilidade de mão-de-obra. Mas já vimos que, no caso do imobiliário, acabou por gerar uma tendência inimiga da economia. Depois, o crédito fácil para um consumo mirífico e sem limites gerou, como diz Geoff Mulgan, uma grave queda na taxa de poupança que pôs em grave risco a capacidade de proteger o próprio futuro, sobretudo quando o sistema financeiro deixava de ter suporte efectivo na economia real, evoluindo para um mundo esquizofrénico onde já nada correspondia a nada. Acresce que o mundo de referência desta dinâmica era o mundo do indivíduo solitário, sem referentes comunitários. Esses mesmos que antes lhe garantiam uma certa sustentabilidade existencial e social. E o mais grave é que estes problemas passaram a ter uma dimensão global, ao mesmo tempo que, como diz Fareed Zakaria, as débeis respostas continuavam a ser ensaiadas sobretudo a nível nacional.

A verdade é que, depois da crise, muitas coisas terão de mudar. E não só no sistema financeiro. Porque o que se está a verificar é uma autêntica mudança de paradigma nos sistemas sociais.

Por: João de Almeida Santos

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