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A Convenção de Genebra, interpretada em Guantanamo e Gaza

Depois do parecer do Supremo Tribunal sobre os julgamentos dos presos de Guantanamo, o governo norte-americano decidiu aplicar o artigo 3º da Convenção de Genebra que proíbe os tratamentos cruéis e degradantes, a tortura e o uso da violência. Até agora a tese da Administração Bush era a de que a Convenção não protegia os prisioneiros da Al-Qaeda e os talibãs, já que não eram combatentes de acordo com as leis da guerra.

(…)

A ideia de que a segurança nacional justifica tudo está também na base da reacção de Israel no seu confronto com os palestinianos. O seu governo não reconhece que tem inimigos legítimos, mas sim terroristas, que, por definição, estão privados de todo o direito. Os soldados israelitas capturados pelos palestinianos são sequestrados, enquanto que os palestinianos capturados por Israel são, por definição, terroristas detidos e não prisioneiros de guerra. Um soldado capturado pelos grupos armados da Palestina deve ser imediatamente libertado sem condições; um palestiniano capturado por Israel pode passar anos na prisão sem qualquer julgamento.

(…) Mas a Convenção de Genebra sobre a protecção devida aos civis em tempo de guerra não parece ser um best-seller no exército israelita, como tão pouco o é entre os que atacam os civis israelitas.

A Convenção não impede que Israel se defenda contra as agressões que sofre. Mas estipula condições para que a população civil sofra o menos possível. O art. 33º diz que “As penas colectivas, assim como todas as medidas de intimação ou de terrorismo, são proibidas (…). As medidas de represália contra as pessoas protegidas e seus bens são proibidas”. Em resposta a isto, Israel, com os seus assassinatos selectivos de dirigentes do Hamas, liquida toda uma família que tem o azar de viver no mesmo imóvel, já para não mencionar os bloqueios sucessivos que causam uma penúria extrema a toda a população e que responde, sem qualquer dúvida, aos critérios de um castigo colectivo.

O Art. 23º exige que “cada parte concederá a livre passagem de todas as remessas de medicamentos, material sanitário”; no entanto, o bloqueio israelita deixou os Hospitais de Gaza sem nada precisamente na altura em que há mais vítimas para cuidar. Os cortes de electricidade e a escassez de combustível, cujo aprovisionamento depende de Israel, têm provocado distúrbios no fornecimento de água.

“É proibido à Potência ocupante destruir os bens móveis ou imóveis, pertencendo individual ou colectivamente a pessoas particulares, ao Estado ou a colectividade públicas”, diz o Art. 53º. Mas a primeira coisa que o exército israelita fez foi bombardear a única central eléctrica de Gaza, para deixar sem electricidade todo um território. (…) E na invasão do Líbano, justificada com ataques ao Hezbollah, destruiu infra-estruturas civis (aeroporto de Beirute, pontes, estradas…).

O propósito, confessado pelo governo, é causar um sofrimento tal à população palestiniana ou libanesa que lhes faça compreender não ser conveniente apoiar grupos armados que combatam Israel. Por outro lado, com o lançamento de rockets contra populações israelitas, os activistas da Palestina querem mostrar que a ocupação deve terminar. (…) Mas o Art. 3º diz que “as pessoas que não tomem parte directamente nas hostilidades (…) serão, em todas as circunstâncias, tratadas com humanidade”.

(…) a Convenção de Genebra foi elaborada em 1949 para que a ideia do bom trato para com o prisioneiro ou para com a população não ficasse submetida ao critério do mais forte. Ignorá-la em nome da retórica da segurança só pode ir dar ao retrocesso da civilização.

Carlos Tavares, Guarda

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