Arquivo

A Coleccionadora de Cores

PRÉMIO RIACHO – 1ª classificada

Coleccionava coisas desde que os seus olhos se tinham focado, pela primeira vez, nos pequenos pormenores que distinguem cada uma delas. Podia enumerar todos os objectos pelos quais já se interessara, mas nenhum bem daí adviria. Moedas, folhas, flores, fotografias, livros, … Tudo tão mundano, tão comum e, por isso mesmo, tão pouco interessante!

A verdade é que acabava por se cansar das suas colecções. Onde os outros viam maravilhosos exemplares, ela via objectos insignificantes; onde os outros viam uma enorme dedicação, ela via um simples capricho; onde os outros viam uma prova de paciência, ela via, apenas, o efeito da insatisfação. Nenhuma das suas inúmeras recolhas a fizera sentir-se verdadeiramente realizada, nenhuma lhe dera a sensação de ter cumprido o seu dever, nenhuma lhe transmitira a paz por que tanto ansiava. Até ao dia em que descobriu que nascera para coleccionar cores.

Nunca poderia esquecer o momento em que tivera tal epifania. Chovia muito, tanto que poucos segundos tinham bastado para a encharcar totalmente, qual onda gigantesca de frio. Ela era uma das poucas pessoas que se viam na rua e a única que parecia não ter para onde ir. Contudo, o destino quis que ela procurasse abrigo sob um qualquer telheiro de uma qualquer habitação, debaixo do qual se encontrava já um vulto encapuçado, também ele um fugitivo da Natureza e um insatisfeito da vida.

Não trocaram qualquer palavra: não ousavam interromper o triste canto da chuva. As suas vestes não se tocavam, ainda que poucos centímetros as separassem; os seus olhos, contudo, estavam presos uns nos outros, totalmente esquecidos de tudo o resto, totalmente cativos, como se estivessem sob um caprichoso feitiço.

Nunca seria capaz de esquecer a primeira aquisição da sua derradeira colecção, nem nunca poderia encontrar algo que dela se aproximasse remotamente. Não, aquele olhar era único: era verde-floresta e verde-água, com traços de céu e de mar, nuances de chocolate e de mel, essência de liberdade e melancolia. Era pura força, puro sentimento, pura vida. Era a personificação da beleza e da perfeição, era a fonte do universo, da totalidade, do infinito. Era uno e diverso, verdade e ilusão, certeza e contradição. Era singular na sua pluralidade de cores e plural na sua singularidade de sentimentos…

E desapareceu assim que a chuva cessou.

A partir daí, ela encetou uma demanda, desesperada por novas cores, faminta da sinestesia que aquele olhar lhe apresentara. Encontrou milhares de combinações, apreciou-as com o máximo de intensidade que conseguiu, quase se apaixonou por umas quantas. No entanto, nenhuma delas se comparava em grandeza nem complexidade à primeira recolha, facto que contribuiu para que o seu ser parecesse ficar cada vez mais exigente e insaciável, cada vez mais desesperado, cada vez mais perdido.

Foi então que compreendeu que toda a sua busca se resumia a um só propósito: encontrar aqueles olhos hipnotizantes, cuja beleza ofuscava as demais peças da sua colecção. O reencontro era imperativo… Tinha de experimentar aquela cor intrincada – ou seria uma mistura de cores simples? – mais uma vez, custasse o que custasse!

Os dias sucediam-se, os caminhos percorridos também. Os rostos multiplicavam-se, as cidades escrutinadas somavam-se umas às outras, aparentemente sem fim. Os insucessos iam-se acumulando e a insatisfação era-lhes proporcional. Só a esperança permanecia firme e estanque, longe de qualquer abalo e hesitação, eterna em teoria.

Quando os dias se transformaram em anos, as cores coleccionadas já não tinham número, porém, a colecção ainda não estava completa: faltava-lhe a repetição do original, a duplicação da jóia mais preciosa. A sua memória era ainda vívida, mas ela não se conseguia contentar com algo tão irreal… O cansaço e o desgosto ameaçavam a determinação e o desejo, contudo, a vontade e a esperança eram aliadas invencíveis naquela guerra – não estavam dispostas a pôr termo àquela busca.

Os que nunca desistem merecem ser recompensados. E, de facto, a coleccionadora de cores, embora já no limiar da exaustão e do desamparo, nunca desistiu… e encontrou o dono do que tanto buscara. Ironicamente, um temporal arrastara-a para um abrigo precário, partilhado com um desconhecido… Mas, oh, que doce prémio! São duas esmeraldas que a fitam com intensidade, são traços de azul, castanho e dourado que a animam, são demonstrações de verdadeira beleza e poder que a subjugam.

Era a cor mais desejada e amada do mundo e, agora, era também sua.

Quem precisa de coleccionar o que o destino já tinha decidido oferecer-lhe, no início do mundo e de tudo?

Maria João Pinto (12º C)

Sobre o autor

Leave a Reply