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A Callas

Todas as ausências, todas as amnésias, todas as abstinências encontraram nela a voz e tornaram-na um destino. Aquela escuridão áspera, a vastidão de agudos e de graves, a fraqueza antes do canto e a força depois dele, a sucessão de máscaras vocais, a altivez sonora fizeram de todo o chão que ela pisava a rocha de Delfos sobre a qual a sibila cantava o seu oráculo obscuro. E o seu corpo era o anfiteatro de um Epidauro vital onde o vento caía sobre a voz para a levar consigo até aos limites da terra. Maria Callas, cariátide da ausência, soube sempre que o seu destino era coincidir com o destino. Para isso, os acontecimentos, os atributos e os símbolos nela se reuniram. Grega e trágica, dita e maldita, genial e geniosa, idolatrada e traída, vencedora e derrotada, tudo lhe sucedeu para tornar mais real o mito e a imagem imperiosa dele.

Na Callas, as ausências encontraram a voz para que ela as dissesse, as escondesse, as preenchesse. Tornaram-se presenças e povoaram a terra. Porque as ausências a que a sua voz deu voz foram todas: as do amor, da honra, da pátria, da felicidade, do apaziguamento, da alegria. E também do esquecimento, da razão, do triunfo, da paz, dos deuses. E quem clama ausência, grita vazio, carência, falta, perda, solidão e exílio. No ângulo da vida com a morte onde esta voz vive, a flecha do tempo, que é o grande mestre das ausências, encontrou o arco para atingir o alvo, marcando-o com uma ferida incurável.

Ligado a “Maria Callas A Exposição de Lisboa”, que está no Museu da Electricidade, passei os últimos meses, juntando-os aos últimos anos, a ouvir a Callas. Agora, também a saber mais dela, a viver frente a ela. Os objectos que estão na exposição e a que durante a vida chamou seus tornam-se aqui heráldica e necromancia. Tenho observado nos rostos dos visitantes uma alegria que se parece com o fervor. À passagem pelos espelhos que ela fitou, pelos vestidos que raptaram o seu corpo, pelas jóias que brilharam sob a tristeza do seu olhar, reconhecemos, não o seu ser, mas o reflexo dele nos dias e nas coisas. O seu ser, esse, está na sua voz íngreme e despovoada, na perfeição suja, no ímpeto metálico de punhal, no segredo denso. A Callas cantava como se fizesse uma acusação. Ou como se confessasse um crime. Ouvi-la é uma doença que cura. Por todo o lado, no espaço da exposição, a voz aparece como um relâmpago acústico, um vórtice vocal, uma cilada em que se cai quando menos se espera. Essa voz de timbres e de tons terríveis, de voos e de mergulhos, de presságios e de preces, de lamentos e de uivos, que se lança sobre nós como um animal selvagem – e nos apanha e nos devora e nos mata e nos ressuscita! A Callas era a Eurídice de um Orfeu interior.

Há nesta voz febril e alterosa um ponto de vista sobre a vida. O pathos dela cruza o “hüzün” árabe-turco e a saudade portuguesa, que é permanência do perdido. Na sua beleza dura, o “kitsch” nunca a consegue alcançar. Um jornalista perguntou-me, há pouco, qual, de todas as peças expostas, eu escolheria para símbolo. As perguntas fáceis têm respostas difíceis. Pensei e acabei por responder: o pequeno lápis “Cartier”, que tem gravadas no topo as suas iniciais MC, e que ela usava para, incansavelmente, anotar as partituras, quando estudava os seus papéis. Escolhi esse objecto, tão ínfimo quando comparado com a luz das jóias, o porte dos vestidos, a ansiedade das cartas, a revelação das fotografias, a grandeza dos cenários, porque quis lembrar que por detrás de um palco há fundos, longos e labirínticos bastidores. Que, antes da voz e da sua aparição ao mundo, havia horas e horas de trabalho e de esforço e de cuidado, obsessivos e totalitários. Imaginei-a então de lápis entre os dedos, concentrada como um gato, a ler as partituras, a decifrar-lhes o sentido, a torná-las suas, a fazê-las nossas. Vi-a a anotar minuciosamente, enquanto Luchino Visconti lhe falava das personagem, do seu enigma, do seu ímpeto. A Callas, cantora e actriz, grande cantora-actriz, astuto animal de palco a preparar o salto sobre o público!

O conflito com a mãe; a aprendizagem com Elvira de Hidalgo; o amor sem amor com Meneghin, marido e empresário; o divórcio; a paixão louca por Onassis; os escândalos; a traição dele com Jacqueline Kennedy; a solidão; a morte, foram episódios que lhe atormentaram ou exaltaram os dias sobre a terra. A sua vida foi um grito carnívoro que atravessou o mundo. Mas, no centro da vida, esteve, está e estará a voz, a construção e a destruição dela. Quando uma acabou, a outra acabou também, tornando-se inseparáveis. Mas, afinal, a sua voz continua connosco. E a sua vida vem com ela. É por isso que Maria Callas não consegue que a deixemos morrer.

Por: José Manuel dos Santos

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