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A aldeia que continua vestida de negro

Dez anos depois de um dos mais atrozes acidentes de viação na região, em Vale de Afonsinho ainda se lamentam os que ficaram no quilómetro 153 do IP5

Seis mortos e quatro feridos foi o resultado do maior acidente verificado no antigo IP5, “a estrada da morte”, como era conhecido na altura. Já lá vão mais de 10 anos. A 13 de Outubro de 1997, seis das 14 pessoas – quase todas da mesma família – que regressavam de um casamento em Massamá (Sintra) perderam a vida na recta que antecedia a curva do Alvendre (no sentido Vilar Formoso-Aveiro). Todos eram naturais de Vale de Afonsinho, uma pequena aldeia a escassos quilómetros de Figueira de Castelo Rodrigo.

Pouco passava da uma da manhã quando uma carrinha ligeira de passageiros esbarrou contra um camião, depois de uma ultrapassagem mal calculada durante a qual o condutor foi surpreendido por outro pesado no sentido contrário. Dez anos depois, o luto ainda não foi levantado em Vale de Afonsinho. Os cerca de 100 habitantes da localidade não esqueceram os que ficaram no quilómetro 153 do antigo IP5. Perdeu a vida o condutor da carrinha, Abílio Santos (44 anos) e os seus dois filhos, Luís (de 11) e Sara (14). Faleceram, igualmente, Imperatriz Almeida (77 anos), Lurdes Almeida (60) e Luís Silveira, pai da noiva (54 anos). Sobreviveram, para tentar contar a história, a mulher de Abílio Santos, Luísa Santos, Cláudia Silveira (na altura com apenas 11 anos), Ernesto Cavaca (de 60) e o motorista do camião TIR, José Ferreira, natural de Soure. Hoje, Vale de Afonsinho poderia ser uma aldeia igual a tantas outras. Meia dúzia de ruas, desenhadas de forma mais ou menos geométrica. Ao centro, a igreja, a casa morturária e, ao lado, um pequeno parque infantil. Um minimercado e a sede da Junta de Freguesia completam este verdadeiro quadro de província.

No cemitério, jaz a pequena lápide que assinala a tragédia, promovida a monumento e epicentro da memória colectiva da terra. De resto, pouco mudou na última década. Manuel Reigado continua a presidir à Junta e ainda se recorda de como foi avisado do acidente, «perto das quatro da manhã, pelo secretário da Junta». Coube-lhe a tarefa de providenciar toda a logística necessária para que, no dia seguinte, fossem albergados os seis corpos no pequeno cemitério. Em grau mais ou menos próximo, toda a gente é familiar de algum dos protagonistas do fatídico acontecimento que lançou Vale de Afonsinho para as primeiras páginas dos jornais. Hoje, Manuel Reigado garante que ainda há assuntos «em que não se pode tocar». O acidente é um deles, sendo mesmo uma espécie de tabu que o tempo cristalizou. Mas há coisas que não se esquecem. O autarca recorda, por exemplo, que, cinco dias antes do sinistro, nasceu o seu neto João Pedro. Ironia do destino, nestes últimos 10 anos apenas nasceram quatro crianças na aldeia.

As viúvas de Vale de Afonsinho

Luísa Santos perdeu o marido e os filhos e escapou à morte. Ainda veste de preto e não quer falar do assunto. «Já sei ao que vêm», barra a conversa. É que, nos últimos anos, os jornalistas têm sido presença «assídua» à porta de casa. A vizinha, Maria da Conceição, conta que a família tem uma casa «muito bonita» em Figueira de Castelo Rodrigo. Só que a viúva nunca mais lá conseguiu estar, prefere a companhia da mãe na aldeia. «É que tem lá o quarto dos filhos, está a ver», acrescenta. De luto continua também Maria de Lurdes Amaral. Perdeu o marido na viagem de regresso do casamento da filha. A mulher seguia noutro carro, mais atrás, acompanhada dos sobrinhos. Outra sobrevivente foi a outra filha do casal, que ainda esteve internada em Coimbra «muito tempo» e que estuda actualmente na Guarda. Conta agora 21 anos. «Mudou tudo desde essa noite», reconhece Maria de Lurdes Amaral, que perdeu o seu «ganha-pão». Sobrevive com a pensão que o marido lhe deixou, «mas é uma miséria, porque ele trabalhava na Câmara de Figueira e estava longe de chegar à reforma», adianta. «Costuma-se dizer que quando cai a travessa da casa, caem logo os saibros todos. Nem é bom a gente lembrar-se do que aconteceu, mas lembramo-nos todos os dias», acrescenta. Um desabafo que deixa escapar enquanto cumpre a rotina diária e abre a pequena caixa de correio, ao cimo das escadas. Talvez à procura de notícias de quem já não volta.

Rosa Ramos

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