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9-11

Theatrum Mundi

Dois algarismos separados por um traço. Ao jeito americano, o primeiro indica o mês e o segundo indica o dia. É o dia de hoje em que escrevo esta crónica, 11 de Setembro de 2003, mas há muito que os dois algarismos separados pelo traço dispensaram o ano. Todos os anos têm o seu 9-11, ou ‘nainelevan’, mas este 9-11, dito e escrito assim, com a simplicidade que esconde as realidades mais complexas, refere-se à conjugação de dia e mês do ano de 2001, o ponto no tempo que para muitos marca um antes e um depois nas expectativas de segurança internacional e na forma de conceber os relacionamentos globais.

Os dois algarismos separados pelo traço lembram-nos que há dois anos foi declarada uma guerra global contra o terrorismo e que, apesar das constantes manifestações de confiança na estratégia delineada, o relativo optimismo do pós-Guerra Fria deu lugar ao pessimismo de quem se obstina na procura de eixos do mal. De há dois anos a esta parte, tem vindo a crescer o debate à volta da própria noção de segurança e do equilíbrio entre os sacrifícios que o estado exige aos cidadãos em nome deste valor e os direitos individuais. Apesar de pouco representado na comunicação social, é nos Estados Unidos que este debate assume um vigor e uma radicalização sem precedentes, com o poder estabelecido a ser acusado de mobilizar todos os recursos à sua disposição – incluindo a ciência e os cientistas – para legitimar projectos políticos, interesses económicos e redes de influência.

Perante a enormidade da reconstrução do Iraque, a administração Bush parece ter-se recentemente convertido aos benefícios do multilateralismo. Depois de ter forçado a intervenção militar ao arrepio das regras e procedimentos das Nações Unidas, utiliza agora esse conceito redentor como bandeira para legitimar a ocupação e pedir financiamento e soldados, sem abdicar do real comando das forças. E prometendo alguma distribuição dos benefícios… A prioridade da luta global contra o terrorismo também tem feito esquecer, como aconteceu no Afeganistão, o compromisso religiosamente assumido com a reconstrução do país ou, como dizem os anglo-saxónicos, o nation-building.

O aniversário do 9-11 e as constantes evocações dos terríveis acontecimentos a que está associado não podem fazer esquecer que, nesta mesma semana, tem lugar em Cancun, no México, a cimeira da Organização Mundial do Comércio (OMC). É uma luta mais silenciosa a que vai ter lugar na cidade mexicana, desprovida da solenidade das bandeiras desfraldadas, dos hinos e dos discursos inflamados da cruzada global contra o terrorismo. Contudo, também aí se joga algo de absolutamente crucial no que toca ao relacionamento global. Está em causa a definição de regras mais justas, leais e solidárias do comércio internacional e sobretudo saber se os países do Norte aceitam flexibilizar as regras do direito de propriedade que favorecem as suas indústrias farmacêuticas para acudir às populações do Sul flageladas pela doença e a fome. No fundo, trata-se de saber se ainda é possível recorrer ao imperativo moral e à responsabilidade global para colocar limites à teologia do mercado.

Por: Marcos Farias Ferreira

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