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11 de Setembro – Um ensaio lógico-sentimental

Pode parecer contraditório esta animosidade de alguns intelectuais para com a civilização ocidental, que conseguiu proporcionar aos seus habitantes um conjunto de comodidades nunca vistas na História da Humanidade. Muitas delas são resultado de exigências e reivindicações dos partidos parlamentares da área política de onde saem agora os desencantados do capitalismo. Bjorn Lomborg, um professor de estatística dinamarquês, demonstrou como o argumento do enriquecimento do Ocidente à custa dos países do terceiro mundo é uma falácia. No seu livro The Skeptical Environmentalist está demonstrado que as desigualdades reais dos países mais ricos e mais pobres não se acentuaram. Para além disso, nenhum dos países dos cinquenta mais pobres do Mundo é fonte de terrorismo. Por isso, estabelecer uma relação de causa-efeito entre a pobreza e o ataque ao World Trade Center não tem qualquer lógica.

A posição dos intelectuais para com o Ocidente foi, desde sempre, muito problemática. Contra o liberalismo na política e o capitalismo na economia, acusavam o mundo ocidental – mesmo apesar das evidências – de causar os maiores males da Humanidade. Muitos aceitavam tiranias ideológicas noutras partes do mundo, em nome da ideologia. Sartre, por exemplo, ao mesmo tempo que chamava “cão louco” aos EUA, rejubilava com o regime de Pol-Pot no Cambodja. Christopher Hitchens, que se separou da esquerda anglo-saxónica pelas posições dos seus camaradas, escreveu que aqueles que justificam o terror não são mais que cúmplices das suas acções.

Estes intelectuais não se preocupam com a ameaça da destruição do Ocidente porque é esse receio que lhes alimenta a teorização sobre o fim da civilização. Sempre que o mundo ocidental correu perigo, lá estavam uns quantos, satisfeitos, a aplaudir.

Neste caso, no entanto, incorrem num tremendo equívoco. Por muito que defendam e justifiquem acções terroristas como estas, aqueles que as cometem não têm por eles o mais mínimo respeito. Aliás, para esses fanáticos, a própria liberdade de expressão e a crítica aberta ao fundamentos das sociedades ocidentais feita de dentro é apenas mais um sintoma da doença que diagnosticaram a um mundo onde não se reconhecem.

Os atentados de 11 de Setembro fizeram muitos relembrar a tese de Huntington sobre o choque das civilizações. A civilização do Islão contra a civilização ocidental. Mas porque não falar do resto do mundo contra a civilização ocidental? Outra vez, o Ocidente, com uma prosperidade económica e social sem precedentes, é acusado de tudo e do seu contrário. É acusado de não usar essa prosperidade para ajudar os mais pobres e é acusado de interferir e de tentar hegemonizar a sua cultura, no sentido mais lato da palavra. Não por acaso, três dias antes do atentado, a Europa havia sido “obrigada” a pedir desculpa aos povos africanos, asiáticos e sul-americanos pelo colonialismo e pela escravatura. O complexo do homem branco, em todo o seu esplendor. O multiculturalismo tem esta graça. Devemos respeitar todas as culturas como elas são. Todas? Não. A Ocidental não merece o mesmo respeito. Era com essa raiva e a propósito desse orgulho de pertencer a esta civilização, criada à força de ferro e ideias durante muitos séculos, que Oriana Fallaci falava no famoso ensaio que acabou em livro.

Em nenhuma outra civilização há tanta tolerância com outras culturas e formas de viver como nesta. Hegemonia cultural do Ocidente? Provavelmente. Mas hoje essa apropriação onde e quando acontece, é voluntária. O tempo da evangelização forçada já lá vai.

A trupe de Osama bin Laden clama pela decadência do Ocidente. Que somos infiéis, que somos impuros, que estamos perdidos. Eles perceberam que há cá dentro quem assim também pense. Mas julgam mal que isso enfraquece o Ocidente. As liberdades e a tolerância dos Estados ocidentais podem ser aproveitados para desferir golpes profundos, mas dificilmente para os matar. Não acreditar nisto é meio caminho andado para a intolerância e para a chegada de messias totalitários, com resultados conhecidos pelo mundo fora e pela Europa dentro. Julgam eles que a liberdade individual é um problema que desestrutura as sociedades. Esta é uma boa hora para mostrar o contrário.

A Europa e os EUA continuarão a ser o destino desejado de muitos e muitos imigrantes provenientes do resto do mundo. À procura de uma vida mais decente e mais livre. Também eles merecem que o Ocidente se respeite a si próprio, tolerando com liberdade, mas assumindo sem temor a sua identidade.

Miguel Sousa Tavares escreveu um ano depois do atentado que era mais grego que americano. Que a Europa não é americana. Talvez não seja. Mas a América é a Europa, apenas mais nova e mais multiétnica, do outro lado do Atlântico. Há muitas diferenças, mas unem-as princípios civilizacionais. Também a América é greco-romana, também a América é judaico-cristã.

Engana-se quem julga que o combate dos terroristas é o capitalismo ou a globalização. A guerra deles são os nossos pilares de civilização de que desdenham. A Europa não podia ser anti-americana. Não devia ser. Mas tem sido. Uma das consequências do 11 de Setembro foi o aumento desse sentimento dos europeus contra uma proclamada hegemonia global norte-americana. Esquecendo-se que essa hegemonia serviu a Europa livre contra o perigo soviético durante cinquenta anos. Esquecendo-se que o poder militar norte-americano interveio já nos finais do século passado, a pedido da União Europeia, quando a guerra estava às portas da Europa, na ex-Jugoslávia. Esquecendo-se que a América, principalmente as suas elites mais cultas, olha para a Europa com um misto de saudade aristocrática e ternura filial. Numa personificação interessante, diz-se que a América é mais ágil e rude, a Europa mais sábia e subtil. Um mundo onde uma e outra não se entendam é não só desinteressante como essencialmente perigoso.

Porque a Europa que hoje zomba da América não se pode esquecer que se naquele dia foi o World Trade Center, um dia poderá ser a Torre Eiffel, o Big Ben ou a Catedral de Colónia, quase intocada durante a II Guerra Mundial quando tudo ao seu lado foi reduzido a escombros.

A indústria cultural americana, dizem alguns, impõe-se e esmaga outras manifestações de criatividade artística. Isto é, obviamente, falso. As mais variadas formas de produção cultural fora do mainstream anglo-saxónico têm, nos últimos anos, ganho uma expressão nunca antes vista, dentro e fora dos Estados Unidos.

O sentimento anti-americano que ressurgiu na Europa no último ano parece, muitas vezes, apenas um longo lamento contra a perda da hegemonia que os habitantes do Velho Continente se habituaram a ter. Da esquerda política, não se deve menosprezar uma solidariedade quase mecânica pelos mais desfavorecidos, sejam quais forem as circunstâncias. De uma esquerda radical, aproveita-se também para desferir alguns golpes no que é o seu verdadeiro objectivo, a destruição do capitalismo, ainda sem ter percebido que foi este sistema económico que permitiu o alargamento das liberdades dos indivíduos e a melhoria da sua qualidade de vida.

O 11 de Setembro, finalmente, voltou a trazer à discussão pública um conjunto de ideias que muitos tinham já enterrado. A noção de direita e esquerda, a defesa de um conjunto de valores civilizacionais, a discussão sobre a própria fundação da Europa (e do mundo que a Europa criou fora do seu espaço continental) saíram de um limbo e fazem parte, outra vez, do debate de ideias e produção intelectual, a principal arma de expansão do Ocidente.

A batalha por esta civilização a que me orgulho pertencer é uma batalha difícil, longa e imponderável. JRR Tolkien não é dos autores mais apreciados pelos ilustres intelectuais portugueses e europeus, mas continuo a achar o seu Senhor dos Anéis uma bela metáfora sobre os perigos que nos rodeiam. E se for preciso, não ter a mais mínima dúvida de proceder à destruição do Anel do Mal, só possível nas montanhas onde ele foi forjado.

Por: Nuno Amaral Jerónimo

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